Luciana Caetano – Economista e professora da FEAC/UFAL

A Constituição Cidadã de 1988 tem apenas 33 anos e já sofreu 111 emendas, a primeira em 1992, quatro anos após sua promulgação. Por ser inclusiva e universalizar direitos democráticos, a Carta Magna tem enfrentado a fúria de grupos oligárquicos, herdeiros da cultura escravocrata, acostumados à exploração sem limites da força de trabalho. “Desde que criaram o Bolsa Família, ninguém consegue mais uma empregada doméstica” – ouvi de uma senhora habituada aos tradicionais métodos de exploração, assim como em vídeo de Bolsonaro, antes de ser presidente da República. A frase não lhe constrangia, ao contrário, parecia uma reivindicação legítima pagar 1/2 salário mínimo por uma jornada de tempo quase integral.

Essas mesmas pessoas vão a templos religiosos aos finais de semana, onde depositam moedas em troca da “paz de consciência” – uma mercantilização assentada no senso de utilitarismo. De um lado, a liderança religiosa enche o cofrinho de moedas, do outro, o cristão carregado de culpa esvazia o peso de sua consciência. Na segunda-feira, o ciclo recomeça. A igreja funciona como unidade de reciclagem de lixo tóxico:  o “pecador” descarrega seus pecados, paga umas moedas e retorna à sua casa livre de culpa.

Retornemos às Emendas Constitucionais. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 23/2021, já aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos, se aprovada no Senado, resultará em nova Emenda Constitucional (EC), instituindo calote nos credores da União após ação transitada em julgado. Atualmente, esse calote é inconstitucional, mas a aprovação da PEC transforma o crime em ato lícito, pelas mãos do Congresso Nacional e do Presidente da República.

Duas perguntas: i. qual o interesse em dar calote em trabalhadores que esperam essa reparação há décadas? ii. Qual a relação da PEC 23/2021 com o Auxílio Brasil?

Para a primeira pergunta, há duas explicações não excludentes: i. a perseguição a servidores públicos tem sido uma fonte inesgotável de prazer sádico a Bolsonaro e Paulo Guedes; ii. Transferir 2/3 da dívida de quase R$ 90 bilhões para os próximos 9 anos e disponibilizar mais recurso para ser distribuído entre as Emendas do Relator (Orçamento Secreto), dotando os parlamentares de vantagem competitiva em relação aos novos aspirantes a cargo eletivo. Os parlamentares sempre anunciam as obras financiadas por essas Emendas como generosidade sua e não como fruto da contribuição compulsória às custas da sociedade.

Para a segunda pergunta, NÃO HÁ RELAÇÃO entre PEC 23/2021 e Auxílio Brasil. Os precatórios são dívidas da União e não fonte de financiamento para despesa contínua. Ademais, o programa Bolsa Família, já destruído por Bolsonaro, integrava o grupo de benefícios da Seguridade Social para o qual já existe fonte de financiamento prevista na Constituição Federal de 1988.

Criado no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2004), o Bolsa Família estava sem reajuste desde 2018. O valor médio era R$ 189,0 e a previsão é que o Auxílio Brasil fique em torno de R$ 217,0 e não R$ 400,0 como foi anunciado por Bolsonaro, portanto, um reajuste de apenas 17%. Vale ressaltar que, para este benefício, não há previsão de fonte de financiamento e ele está assegurado por Medida Provisória até dez/2022. Na prática, não há de garantia de recebimento a partir de 2023. Essa insegurança referente à fonte de recurso do Auxílio Brasil não é falta de atenção do relator, mas um projeto de governo para tornar a população vulnerável refém das artimanhas de Bolsonaro.

A dívida ativa da União é de quase R$ 2 trilhões, suficiente para pagar o Bolsa Família ou Auxílio Brasil por muitos anos, sem dar calote em trabalhadores e sem sacrificar os mais pobres. Com a elevada taxa de desemprego e queda da massa salarial, injetar R$ 90 bilhões na economia, pelas mãos da classe trabalhadora, poderia contribuir com sua reanimação. O estado de expectativa dos investidores é de muita desconfiança e cada dia com Bolsonaro tende a aumentar o prazo necessário para recuperação econômica. Suas ações são equivocadas até mesmo para os parâmetros neoliberais. O saldo desse mandato é retrocesso econômico, social, ambiental e cultural.

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