Famílias atingidas por desastres como o da Braskem em Maceió e o incêndio da Boate Kiss são processadas por denunciar omissões do Estado. Especialistas e organismos internacionais apontam grave violação de direitos humanos.
No Brasil, famílias que perderam entes queridos em tragédias vivem não apenas o luto, mas também uma batalha contra a omissão do Estado. Em um cenário alarmante, a Justiça tem sido usada como instrumento de intimidação contra quem, em busca de respostas, ousa criticar o poder público. Casos recentes em Alagoas e no Rio Grande do Sul revelam um padrão preocupante: o uso do sistema judicial para silenciar vozes que clamam por justiça.
Em Maceió, lideranças comunitárias que emergiram após o afundamento de bairros provocado pela Braskem estão sendo processadas por críticas institucionais. A situação remete diretamente ao que aconteceu com pais de vítimas da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), processados por promotores do Ministério Público do Rio Grande do Sul após denunciarem a lentidão e omissões no processo judicial.
A Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que representa mais de 3 mil familiares, denuncia que os processos judiciais movidos por autoridades contra vítimas e seus representantes são tentativas explícitas de silenciamento. “Vitimar pela segunda vez aqueles que perderam tudo é inaceitável”, afirma a entidade.
Na audiência com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em julho de 2024, representantes dessas famílias relataram a prática recorrente de censura judicial e o uso do segredo de justiça para restringir informações às vítimas. A reação dos comissários foi de perplexidade. A Comissão solicitou mais dados e destacou que essas práticas ferem convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, críticas ao Estado fazem parte do debate democrático e são protegidas pela Constituição. A Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU e outras normativas internacionais reiteram que o uso do sistema penal para retaliar críticas é uma violação de direitos humanos.
A criminalização de críticas genéricas ao Estado — como dizer que houve omissão, corporativismo ou conluio — não configura crime, desde que não haja calúnia ou difamação pessoal. Ainda assim, familiares são constantemente alvos de ações judiciais por manifestarem indignação legítima.
Especialistas afirmam que o abuso do poder público para silenciar a dor é um retrocesso democrático. A Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) reforça que usar o sistema judicial para intimidar cidadãos, principalmente vítimas de tragédias, é ilegal.
O caso de Maceió escancara essa inversão de valores. Nenhum representante da empresa responsável pelo desastre foi punido até agora, enquanto vítimas enfrentam processos judiciais por denunciar o descaso. A omissão estatal prolongada, a ausência de reparação e a falta de acolhimento agravam ainda mais o sofrimento das famílias.
No caso da Boate Kiss, a absolvição dos acusados deixou marcas profundas: doenças graves, internações emergenciais e até tentativas de suicídio entre os quatro inicialmente condenados. A decisão judicial que absolveu um dos pais processados resgatou a importância da liberdade de expressão e alertou: “Que esses tempos sombrios não voltem jamais.”
Os rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho, o incêndio no Ninho do Urubu e a tragédia da Kiss demonstram que, no Brasil, tragédias se repetem — e com elas, o padrão de silenciamento institucional. Para as vítimas, denunciar e exigir justiça é uma forma de honrar a memória dos que partiram.
Organismos internacionais classificam essas práticas como repressão indireta. O Conselho de Direitos Humanos da ONU afirma que “expressões de crítica ao funcionamento da justiça ou à conduta de seus membros são parte essencial da democracia e devem ser protegidas, especialmente quando feitas por vítimas”.
A liberdade de expressão está garantida na Constituição brasileira e em tratados internacionais. A tentativa de cerceá-la por meio da Justiça não apenas viola direitos fundamentais, mas aprofunda o trauma de quem já perdeu tudo. É dever da sociedade e das instituições proteger essas vozes — não calá-las.
Fonte: 082 Notícias