PAULO MEMÓRIA – jornalista e cineasta

O Brasil é um país que, apesar de poucos avanços civilizatórios ocorrerem eventualmente, está sempre a mercê de enormes retrocessos históricos, que destroem todas as conquistas de décadas ou até mesmo séculos. A tragédia da escravidão, que perdurou secularmente, não foi diferente de outros países que foram subjugados por grandes potências dentro do contexto de sua época. Neste aspecto, nada mudou substancialmente na realidade do nosso povo, no que diz respeito à representatividade que cada classe social teve ao seu tempo. Explico melhor. Na minha avaliação, a grande desfortuna brasileira foi, indiscutivelmente, a escravidão, que fomos o último país a aboli-la, mundialmente falando. Não vejo mudanças essenciais na estratificação social, desde que o escravismo foi implantado em nossas fronteiras, no período colonial, entre os séculos XVI e XIX aos estertores do império, com a Lei Áurea sendo assinada em 13 de maio de 1888, a última nação a fazê-lo como disse.

Em pleno século XXI, continuamos convivendo com este grande flagelo humanitário que foi a escravidão. O sociólogo Jessé Souza, que escreveu o magistral “A Elite do Atraso”, afirma que “nós temos um projeto dominante que é a escravidão”, que, ao meu ver, continua atual, numa perspectiva de segmentação social do povo brasileiro. A Casa Grande continua aí, só que agora, ao invés de estar localizada nas antigas fazendas de café do sudeste, nos engenhos de produção de açúcar no nordeste ou nas minas de ouro de Minas Gerais, está instalada na Avenida Paulista ou na Avenida Viera Souto, com uma elite encastelada nos seus preconceitos arraigados socialmente, com uma classe média que representa a figura do feitor, disfarçado de diretores, gerentes e chefes de seções a serviço de uma classe dominante nas empresas nacionais e multinacionais, explorando e massacrando o trabalhador em jornadas de trabalho desumanas e a senzala, hoje estereotipadas na estética das favelas espalhadas pelo Brasil e nos morros cariocas.

Não por acaso, o nome favela, vem precisamente pela ocupação do Morro da Providência, no centro do Rio de Janeiro, pelos Voluntários da Pátria, escravos alforreados por terem lutado na Guerra do Paraguai e que por não terem onde morarem, ocuparam aquele morro, que tinha como planta predominante em seu solo, exatamente a “favela”. O jornalista e historiador Laurentino Gomes, que nos legou a belíssima e didática trilogia composta por 1808, em que retrata a vinda da Família Imperial de Portugal para o Brasil, 1822, no qual narra o período da “independência” brasileira e 1889, clareando os fatos históricos de como surgiu a República em nosso país, afirma agora, no primeiro livro de sua nova trilogia, “Escravidão”, que portugueses e brasileiros foram os maiores traficantes de escravos para as Américas naquele período histórico.

Este comércio ilícito remanesceu por séculos, e foram traficados aproximadamente 5,8 milhões para cá, dos 12,5 milhões que atravessaram o oceano da África para o nosso continente, nesta diáspora forçada e sanguinária, que é um legado sangrento de um momento vergonhoso para a humanidade. Não vejo mudanças substanciais em nosso país, que signifique uma mudança de paradigma histórico ou civilizatório. A exploração do homem pelo homem e as relações de classe continuam com as mesmas características. Estão por aí os senhores, sinhazinhas, feitores, escravos e capitães do Mato. Sobejam exemplos de que o princípio de Lampeduza, que indica que as coisas mudam para continuarem como estão, continua atual em nosso país. O filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, do diretor Sérgio Bianche, faz uma interessante analogia sobre o presente e o passado nacional, que revela a necessidade de uma nova abolição, visto que muito pouco se mudou no Brasil desde tempos imemoriais.

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