Projeto político conservador explora pânico moral para ocultar um cenário onde prevalecem o desmonte do Estado e a desproteção social

Acusações fantasiosas de doutrinação e ideologia de gênero, notícias falsas como o kit gay, a “mamadeira de piroca” e o banheiro unissex, e projetos inquisitórios como o Escola sem Partido têm um alvo em comum: os(as) professores(as).  

Tal como o personagem Dr. Stockmann, médico da peça teatral Um Inimigo do Povo, os(as) professores(as) brasileiros(as) têm sido transformados(as) ameaças à sociedade, numa manobra para ocultar um cenário social e político onde prevalecem o desmonte do Estado, a desproteção social e a insegurança da população.

Henrik Ibsen (1828-1906), dramaturgo norueguês, escreveu o drama realista mostrando como a população de uma pequena cidade transforma a imagem do médico local de cidadão honrado em inimigo do povo, por denunciar publicamente a contaminação da água da cidade. Mais de um século depois, a ficção de Ibsen se torna realidade no Brasil, só que com os(as) educadores(as). 

Dr. Stockmann é perseguido por alertar para problemas que a sociedade prefere não enxergar. Professores(as) são vítimas de ataques e campanhas de difamação apenas por fazerem o trabalho de ensinar, como mostra o e-book O Professor é o Inimigo, das professoras Pâmella Passos e Amanda Mendonça, integrantes do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação & Cultura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).

O livro, de 2021, voltou a ser assunto nas redes sociais nas últimas semanas ao mostrar como uma suposta ameaça de destruição da família e da ordem moral hegemônica é utilizada para maquiar uma escalada conservadora na sociedade: “sentimentos como o medo, o temor de uma possível mudança nas estruturas sociais conhecidas pela maioria da população, vêm sendo produzidos e acionados como parte do projeto de poder em curso no país”.

Parte significativa deste projeto consiste na construção de um inimigo. Neste contexto é criada a figura do “professor doutrinador”. 

Escola sem Partido 

As pesquisadoras fazem um histórico desse processo e chegam ao Movimento Escola sem Partido. Segundo elas, a onda conservadora se formou e se fortaleceu em três momentos. 

O primeiro foi em 2007, quando o jornalista Ali Kamel publicou no jornal O Globo duras críticas à coleção de livros didáticos “Nova História Crítica”, de Mario Schmidt. O segundo, em 2011, na distribuição dos kit anti-homofobia pelo Ministério da Educação. O terceiro foi em 2014, durante a crise política e de polarização da sociedade em torno das campanhas presidenciais.

“Acreditamos ser relevante assinalar que os embates em torno do Plano Nacional de Educação, aprovado também em 2014, se inserem neste quadro de episódios que contribuíram para alavancar a expressividade social e política do Escola sem Partido”, diz o livro.

Comparando a relação entre professor e aluno com a de um sequestro, o Movimento Escola sem Partido passou a convocar as famílias a salvar seus filhos de uma fantasiosa violência intelectual. 

Nesse projeto conservador, o poder da família se sobrepõe ao direito do estudante de obter elementos para produzir de forma autônoma sua visão de mundo. O “professor doutrinador” é aquele que aborda temas e conteúdos que contradizem a vontade e a crença das famílias.

Os(as) professores(as) atingidos(as) apontam o uso da internet e das redes sociais como a principal fagulha para a perseguição. O “linchamento virtual” é um dos maiores temores deles. 

Autocensura pedagógica 

“O clima persecutório e de denuncismo sobre os docentes é cada vez mais relatado por estes, que vêm sendo impedidos, por vezes de forma velada, de abordar certas temáticas em sala de aula, tendo suas vidas expostas em jornais, redes socais e sofrendo até mesmo processos judiciais por doutrinação ideológica”, registra o livro.

O ambiente hostil pode levar à autocensura pedagógica, alertam as autoras. “Entendemos como autocensura pedagógica o movimento pelo qual professores deixam de trabalhar determinados temas, ainda que estejam previstos no currículo de sua disciplina, buscando evitar acusações de doutrinação e/ou exposição, em especial nas redes sociais”, explica o livro.

As autoras listam uma série de ataques a professores(as) noticiados na imprensa e os relacionam a discursos de autoridades públicas estimulando a perseguição. “Em nossa hipótese, os discursos proferidos por figuras públicas ocupantes de cargos no Executivo e no Legislativo vêm sendo acompanhados por um crescimento de episódios abertos de perseguição a docentes em todo o país”, afirmam.

Família

Nesse projeto conservador, a família é usada como dispositivo de controle, naturalizada numa única concepção heteronormativa. Essa “família funcional” atua na sustentação do capitalismo e da precarização trazida pelo desmonte neoliberal, com a retirada de garantias sociais e a diminuição de políticas públicas. 

“Para que isso ocorra, ela não pode ser justa ou democrática, mas, sim, operar na desigualdade de gênero, reforçando a esfera privada e do lar como um espaço feminino mantendo a múltipla jornada de trabalho das mulheres”, detalha o livro.

Desdemocracia

As autoras recorrem ao conceito de “desdemocracia” para caracterizar a situação em que o professor crítico e democrático é produzido como inimigo: “Neste contexto, assistimos à demonização de professores e professoras que, ao praticarem uma educação democrática, são críticos à desdemocracia em curso”.

“Acusados de doutrinadores, professoras e professores têm sobrevivido num cenário brasileiro no qual há uma construção política com manipulação de afeto. Famílias são incitadas a odiar e atacar os profissionais da educação, pois estes estariam ameaçando a segurança de seus valores e direitos. Enquanto isso, os direitos básicos, como acesso à saúde, educação e moradia estão ruindo junto com a democracia brasileira”, explicam as autoras.

Fonte: APP Sindicato

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