Constituinte dá passo importante para tornar públicos os recursos hídricos, hoje controlados por corporações. Lei de Pinochet pode cair. Novo modelo dará atenção às periferias, camponeses e indígenas. O que a mudança ensina ao Brasil
Na última quinta-feira, dia 03 de fevereiro, a Comissão de Meio Ambiente e Modelo Econômico (uma das sete comissões da Convenção Constituinte do Chile) aprovou em votação preliminar o artigo transitório que faz caducar os direitos de aproveitamento e uso da água no país, vigentes atualmente e que foram delegados sob o Código de Águas de 1981.i
A proposta aprovada na semana passada pretende constitucionalizar o uso e a administração das águas que serão regulados “por esta Constituição e pelas leis, e nos territórios indígenas, por seus próprios ordenamentos jurídicos”. Da proposta aprovada consta ainda que:
- o Estado garantirá a preservação e sustentabilidade das bacias hidrográficas para seu uso, fruição e benefício das atuais e futuras gerações do país;
- qualquer atividade suscetível de afetar a qualidade e disponibilidade da água e o equilíbrio dos ecossistemas requer autorização especial da autoridade responsável pela gestão da água (…), desde que estejam associados a usos específicos e temporários e que haja um fluxo mínimo para a manutenção dos ecossistemas;
- os povos e nações preexistentes podem consentir prévia e livremente o uso sustentável de suas águas por terceiros, nos requisitos e condições que livremente definirem, e a priorização dos usos e limites indicados nos artigos anteriores;
- a existência de um mecanismo permanente, contínuo e coordenado entre os serviços públicos encarregados da execução da política indigenista, com o objetivo de promover a proteção, constituição e restabelecimento dos direitos de propriedade ancestral sobre a água dos povos e nações preexistentes ao Estado de acordo com as disposições permanentes desta Constituição.
Não foi aprovado o dispositivo da proposta prevendo que “as águas encontradas em territórios indígenas são reputadas como tais e são propriedade de comunidades, pessoas físicas e organizações indígenas em geral”.
Foram também aprovadas, entre outras, as disposições transitórias que estabelecem:
- a caducidade dos direitos sobre a água (em vigor no código de 1981) e sua restituição com duração máxima de dois anos;
- a perda de validade e eficácia jurídica do Código de Águas em tudo o que for aplicável às normas aprovadas;
- a redistribuição do uso e administração da água no prazo de dois anos a partir da entrada em vigor da Constituição.
A aprovação da caducidade motivou imediata manifestação do presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), Cristián Allendes Marín, que a classificou como uma péssima notícia.ii
Atual Constituição chilena é herança da ditadura militar
Esta aprovação é essencial para alterar o que dispõe a atual Constituição chilena sobre a água. O texto atual, herança da ditadura militar vigente entre 1973 e 1990, na sua única menção à água afirma no artigo 19, nº 24, parágrafo 11, que “Os direitos das pessoas sobre a água, reconhecidos ou constituídos de acordo com a lei, concederão a seus proprietários a propriedade sobre eles”; privatizando o controle e uso da água.
A atual Constituição, portanto, garante a primazia do direito de propriedade, em relação ao direito humano à água e ao esgotamento sanitário, à saúde ou ao meio ambiente.
García Vázquez, pesquisador espanhol, entende que as políticas econômicas de livre mercado, orientadas por Milton Friedman da Escola de Chicago, implementaram um processo de privatização que, nos termos do Código de Águas de 1981, incluiu a água, fazendo com que este Código seja considerado referência mundial pelo tratamento incondicional da água como propriedade privada e mercadoria comercializável.iii
Em recente Relatório, Pedro Arrojo, atual Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário, ao examinar as tendências que caracterizam a mercantilização da água e avaliar suas implicações nos direitos humanos dos mercados de água que foram legalizados na Austrália, no Chile, na Espanha e nos Estados Unidos, chama atenção para os seguintes elementos comuns a estes países:
- Separação da água da terra para permitir a mercantilização da água.
- Desregulamentação da negociação de direitos de uso da água entre usuários e entre diferentes tipos de usos.
- Transição de tarifas públicas regulamentadas, geralmente para recuperação de custos sem fins lucrativos, para preços de água de mercado.
- Aumento da apropriação privada de água, marginalização de usuários vulneráveis e desrespeito por terceiros afetados e valores não produtivos.
- O meio ambiente tende a se tornar apenas mais um ator de mercado, forçando o Estado a comprar direitos hídricos para garantir a sustentabilidade dos ecossistemas.
Arrojo chama atenção que, no Chile, foi o Código de 1981 que desacoplou da terra os direitos de uso da água, para facilitar sua mercantilização. Desse modo, grande parte das vazões dos rios foram atribuídas a grandes companhias hidrelétricas, que desde então podem usá-las ou vendê-las.iv
Código de Águas de Pinochet, reformado, aguarda sanção
O amadurecimento das condições para concretizar as mudanças a tempos pleiteadas pelas organizações populares veio com o resultado das últimas eleições. Depois de onze anos em tramitação, em 12 de janeiro passado, o Senado aprovou por unanimidade a reforma do Código de Águas – instituindo um novo regime jurídico para as águas chilenas. Agora falta apenas a promulgação pelo Presidente da República.
Segundo a Direção-Geral das Águas (DGA), órgão do Ministério de Obras Públicas, a reforma do Código das Águas reconhece o acesso à água e ao esgotamento sanitário como um direito humano essencial e inalienável e que é um bem nacional de uso público, cuja posse e uso pertencem a todos os habitantes, consagrando a prioridade do abastecimento para consumo humano, esgotamento sanitário e uso doméstico de subsistência tanto na outorga como no exercício dos direitos de uso da água.v As principais mudanças em relação aos direitos de uso da água são:
- Os direitos de uso serão constituídos com base no interesse público, para o qual será necessário considerar a proteção do consumo humano e esgotamento sanitário, a preservação do ecossistema, a disponibilidade de água, a sustentabilidade do aquífero e, em geral, aquelas ações destinadas a promover o equilíbrio entre eficiência e segurança nos usos produtivos.
- O “Direito de uso na origem” ou destinado à conservação dos ecossistemas é uma inovação. O Ministério das Obras Públicas (MOP) deve estabelecer uma vazão ecológica mínima com o objetivo de assegurar a conservação da natureza e a proteção do ambiente. O Presidente da República terá competência para reservar o recurso para fins de preservação.
- O direito de uso da água terá caráter temporário e será concedido por meio de outorga. Sua duração será de 30 anos, mas dependerá tanto da disponibilidade da fonte de abastecimento quanto da sustentabilidade do aquífero.
- Havendo problemas de disponibilidade da fonte, será feito uma redução no exercício dos direitos de uso e a redistribuição das águas superficiais proporcionalmente pelo respectivo Conselho de Vigilância Fluvial ou pelo MOP, mesmo sem decreto de escassez de água.
- Os direitos previamente reconhecidos ou constituídos, bem como os que foram regularizados pela autoridade competente, continuarão vigentes e somente poderão ser extintos por seu uso não efetivo, falta de pagamento de patentes ou pelo seu não registro no cadastro próprio no prazo de 18 meses. Portanto, pode-se deduzir que estes manterão seu caráter indefinido.
É exatamente a mudança no reconhecimento dos direitos previamente constituídos que a Comissão de Meio Ambiente e Modelo Econômico da Convenção Constituinte está encaminhando. De fato, a implementação do novo regime das águas no Chile depende da revogação dos direitos vigentes atualmente sobre as águas.
No Brasil, iniciativas vão no sentido oposto
No Brasil, com as orientações neoliberais em voga, o que se vê são iniciativas que vão no sentido oposto as que estão ocorrendo no Chile e visam tratar a água como mercadoria.
O projeto de lei nº 495/2017 apresentado pelo Senador Tasso Jereissati (PSDB), pretende alterar a Lei nº 9.433 de 1997, para introduzir os mercados de água no país. Mais grave, o projeto de lei nº 4.546/21, de iniciativa do Executivo, institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica, trata da organização da exploração e da prestação de serviços hídricos, e cria mecanismos para a entrada do setor privado na produção de água através de infraestruturas hídricas (barragens, adutoras, canais) e de “serviços hídricos”.
Direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário no Chile
Em dezembro último, dando sequência a outras propostas que buscam garantir os direitos à moradia, à vida livre da violência de gênero e à reprodução assistida, um grupo de 16 constituintes chilenos apresentou proposta de norma afirmando que “os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário são garantias indispensáveis para uma vida digna” e que “todos, sem discriminação, têm direito a água suficiente, aceitável, potável, livre de poluição, água física e economicamente acessível para uso pessoal e doméstico”.
A proposição aponta ainda que “o Estado deve garantir a satisfação desse direito atendendo às necessidades das pessoas em seus diferentes contextos, com especial consideração para aqueles que vivem em territórios rurais, periurbanos e indígenas”.
No Brasil, várias iniciativas de emendas nos artigos 5° e 6° da Constituição Federal que tratam da água e do esgotamento sanitário como direito humano estão tramitando nas duas casas do Congresso Nacional. No entanto, sem maior mobilização, será difícil que venham a ser votadas e promulgadas.
Que os avanços do Chile inspirem a luta pela água no Brasil.
Fonte: Outras Palavras