A presença dominante de uma única tradição religiosa nas escolas públicas representa um risco significativo ao princípio do Estado laico

A polêmica sobre a prática dos “intervalos bíblicos” nas escolas públicas , que começou em Pernambuco durante o segundo semestre de 2024 tem gerado debates intensos sobre a liberdade religiosa, a laicidade do Estado e o bem-estar dos estudantes em todo o Brasil. Esses encontros, organizados espontaneamente por alunos durante os intervalos das aulas, envolvem a leitura da Bíblia e a entoação de hinos religiosos. Enquanto alguns defendem os benefícios emocionais e sociais dessas reuniões, outros expressam preocupações quanto à possível violação do princípio da laicidade nas instituições de ensino públicas.

Em dezembro de 2024, a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe) promoveu audiências públicas para discutir o tema. O deputado Adalto Santos (PP), presidente da Comissão de Saúde, destacou os benefícios emocionais e acadêmicos dos intervalos bíblicos, afirmando que “ao fazer uma pausa reflexiva e espiritual, o indivíduo se constitui mais equilibrado emocionalmente e capaz de lidar com os desafios da vida com maior clareza e serenidade”. Ele anunciou a intenção de formular um projeto de lei para garantir o direito a esses intervalos nas escolas estaduais.

Por outro lado, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) instaurou um procedimento administrativo para fiscalizar a prática, após receber denúncias sobre possíveis excessos, como o uso de som alto, a participação de docentes e a presença de pessoas externas à comunidade escolar. O promotor Salomão Ismail Filho esclareceu que a orientação do órgão é fiscalizar possíveis abusos, não proibir os encontros religiosos. Ele enfatizou que “o Estado é neutro e, dentro desta neutralidade, devemos buscar a harmonização entre todas as partes envolvidas”.

A polêmica intensificou-se após o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Pernambuco (Sintepe) provocar o MPPE a averiguar algumas situações relacionadas aos intervalos bíblicos. Entre as preocupações estavam o uso de espaços públicos escolares para a realização de cultos evangélicos e a participação de pessoas que não são alunos nos atos. Em resposta, parlamentares da bancada evangélica criticaram a atuação do sindicato e defenderam a liberdade religiosa dos estudantes. O deputado estadual Renato Antunes (PL-PE) lamentou os questionamentos relacionados à realização desses eventos, afirmando que “deveriam estar preocupados com a violência nas escolas, com a falta de merenda escolar e de ar condicionado, mas estão alarmados porque tem crente lendo a Bíblia”.

A Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco destacou o respeito à laicidade do Estado, à diversidade e à pluralidade, afirmando que os intervalos bíblicos são organizados pelos próprios alunos “sem prejuízo ao calendário escolar”. A pasta ressaltou que as escolas da rede estadual seguem as orientações pedagógicas estabelecidas no Currículo de Pernambuco, fortalecendo a escola pública como espaço de valorização e promoção da diversidade religiosa.

A discussão sobre os intervalos bíblicos nas escolas públicas de Pernambuco reflete a complexidade de equilibrar a liberdade religiosa com o princípio da laicidade do Estado. Enquanto defensores argumentam que essas práticas promovem o bem-estar emocional e a formação integral dos estudantes, críticos alertam para a necessidade de garantir que o ambiente escolar permaneça neutro em termos religiosos, respeitando a diversidade de crenças e assegurando que não haja proselitismo ou coerção. O desafio reside em encontrar um equilíbrio que respeite os direitos individuais dos alunos à liberdade de expressão religiosa, ao mesmo tempo em que se mantém a imparcialidade religiosa das instituições públicas de ensino.

Uma suposta proibição dos chamados “intervalos bíblicos” nas escolas de Pernambuco (momentos destinados à leitura ou atividades relacionadas à Bíblia durante os intervalos de aulas)  foi denunciada nas mídias sociais do ex-deputado federal e ex-prefeito de Jaboatão dos Guararapes (PE) Anderson Ferreira, evangélico da Assembleia de Deus, presidente estadual do Partido Liberal (PL) no estado. A afirmação gerou debates controversos e declarações de outros políticos e entidades sobre liberdade religiosa e laicidade no ambiente escolar. 

Como surgiu esse movimento

O movimento estudantil cristão tem raízes antigas, remontando ao século XIX, quando estudantes de igrejas evangélicas da Europa e da América do Norte começaram a se organizar. Nos Estados Unidos, as Associações Cristãs de Moços (YMCA) e de Moças serviram de base para a criação de um movimento ecumênico internacional, pautado na autonomia e na autogestão. Além de promover encontros para oração e estudos bíblicos em escolas e universidades, essas iniciativas também articularam ações solidárias e esforços pela paz.

Em 1895, a articulação global ganhou força com a fundação da Federação Mundial do Movimento Estudantil Cristão (FUMEC), na Suécia. O evento reuniu representantes de dez países e contou com a liderança do metodista norte-americano John R. Mott e do luterano sueco Karl Fries. Durante as duas guerras mundiais, a organização se destacou no apoio a refugiados e na mediação de processos de reconciliação entre cristãos divididos por conflitos nacionalistas. Em 1948, a FUMEC também participou da criação do Conselho Mundial de Igrejas, mantendo laços estreitos com a entidade até hoje.

Atualmente, no século XXI, a FUMEC atua em 90 países, reunindo mais de dois milhões de membros de diversas denominações cristãs – evangélicas, católicas e ortodoxas. O movimento tem como missão capacitar jovens líderes para que possam conectar sua fé à realidade social e se comprometer com a justiça, sem perder o entusiasmo pelos estudos acadêmicos.

A presença do movimento no Brasil

No Brasil, o movimento estudantil cristão teve início em 1926 com a criação da União de Estudantes para o Trabalho de Cristo (UTEC), voltada para estudantes secundaristas de escolas evangélicas. Originalmente focada no recrutamento e treinamento de missionários, a organização ampliou seu escopo na década de 1930, após contato com a FUMEC, dando origem à União Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB). Já em 1940, foi criado o Movimento de Cristãos Acadêmicos do Brasil (MCAB), voltado para universitários, que posteriormente se fundiu com a UCEB.

A UCEB desempenhou um papel fundamental na releitura das Escrituras e na difusão da teologia da libertação entre evangélicos. No entanto, a repressão da ditadura militar, instaurada em 1964, levou à sua extinção. Mesmo assim, muitos de seus membros continuaram ativos no movimento ecumênico brasileiro.

Outra importante iniciativa cristã estudantil no país é a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), fundada em 1957. Com o objetivo de disseminar o Evangelho nas universidades e escolas secundárias, a organização incentiva a formação de grupos liderados pelos próprios estudantes. No ensino médio, a Aliança Bíblica de Secundaristas (ABS), promovida pela ABUB, mantém essa tradição, organizando encontros bíblicos nos intervalos das aulas para fomentar o compartilhamento da fé e a convivência entre jovens cristãos.

Ameaça ao estado laico

A presença dominante de uma única tradição religiosa nas escolas públicas representa um risco significativo ao princípio do Estado laico, que garante a liberdade de crença e a neutralidade do poder público em relação às religiões. Quando uma determinada doutrina passa a influenciar diretamente o ambiente escolar, cria-se um espaço onde estudantes de diferentes crenças – ou mesmo aqueles sem religião – podem se sentir excluídos ou pressionados a aderir a determinada visão de mundo. Esse desequilíbrio fere os fundamentos democráticos e o direito constitucional à liberdade religiosa.

Além disso, a hegemonia religiosa nas instituições de ensino pode resultar na imposição de valores e práticas que nem sempre refletem a diversidade cultural e espiritual da sociedade. O currículo escolar deve ser pautado por conhecimentos científicos e pluralidade de ideias, garantindo um espaço de aprendizado acessível a todos. Quando conceitos religiosos específicos são apresentados como verdades absolutas dentro da escola, há um risco de desqualificação de perspectivas científicas e filosóficas divergentes, limitando o desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos.

Outro problema é o impacto da hegemonia religiosa no respeito à diversidade e na promoção da tolerância. Escolas devem ser ambientes de convivência harmoniosa entre diferentes crenças e visões de mundo. No entanto, quando há favorecimento de uma religião em detrimento de outras, podem surgir episódios de discriminação contra estudantes que não compartilham da mesma fé. Essa situação tende a alimentar a intolerância e reforçar estereótipos prejudiciais, afastando a escola de seu papel essencial de formar cidadãos críticos e respeitosos das diferenças.

Por fim, a manutenção do Estado laico não significa a exclusão da religião do ambiente social, mas sim a garantia de que nenhuma crença tenha privilégio sobre outras dentro de instituições públicas. O ensino religioso deve ser facultativo e pluralista, respeitando todas as tradições e dando espaço para o debate inter-religioso e filosófico. Somente assim será possível preservar o caráter democrático da educação pública, assegurando que as escolas sejam locais de aprendizado, reflexão e respeito à diversidade.

Fonte: Revista Fórum

Deixe uma resposta