Adunifesp lança campanha em defesa de antropóloga da Unifesp vítima de lawfare, censura e assédio por ter exposto parlamentares bolsonaristas. A luta é coletiva, pela Autonomia Universitária e pela liberdade de cátedra e de pesquisa.
A professora e antropóloga Melvina Araújo, colega da EFLCH-Unifesp, tem tido o seu trabalho acadêmico atacado por uma campanha político-jurídica orquestrada por apoiadores de projetos legislativos anti-indígenas – particularmente por seguidores da ex-ministra (e atual senadora) Damares Alves.
A professora tem sido vítima de uma reação à pesquisa e a um conjunto de publicações por ela desenvolvidas que, dentre outras coisas, expõem o caráter farsesco (e mesmo genocida) de políticas contra os povos originários – particularmente relativamente aos PL-1057/2007 e PL-119/2015, conhecidas pelas (enganosas) alcunhas de leis “do Infanticídio Indígena” e “Muwaji”. São justamente os apoiadores e lobistas de tais leis – cujo núcleo duro gira em torno do gabinete da senadora Damares e da ONG a ela ligada, a Atini – que operam os ataques à nossa colega da Unifesp. Desnecessário dizer que ele redobraram a ofensiva durante o governo Bolsonaro, em que estiveram super-aparelhados e “empoderados” – justamente o período em que a Ação Judicial contra Melvina é movida.
Ela não é a única pesquisadora a sofrer ações jurídicas e assédios do tipo por investigar e apontar, em pesquisas e publicações acadêmicas na área da antropologia e etnologia, as distorções, exageros e falsificações grosseiras contidas nas denúncias de “Infanticídio indígena” por parte de tal ONG, de deputados-pastores e de missionários pentecostais. Tais denúncias visam gerar preconceitos negativos contra a cultura, a religião e a população indígena. Tudo para levar à sua demonização junto à opinião pública e, assim, facilitar sua desagregação social, o sequestro de suas crianças.
Essa intensa mobilização de pautas moralistas e “de costumes” serve, enfim, a um objetivo econômico (e bem imoral): facilitar a tomada de suas terras. Sempre ao gosto das várias pautas reacionárias cada vez mais presentes no país: das lucrativas igrejas pentecostais, passando pela dos ruralistas, garimpeiros e grandes mineradoras. Todas representadas por suas bancadas parlamentares com enorme poder – mantido mesmo com o fim do governo Bolsonaro, já que seguem agrupadas sob as asas no Centrão e com relevantes apoios em amplos segmentos do poder Judiciário e de parcelas do aparato repressor do Estado.
Lawfare e assédio anônimo
O principal ataque à professora Melvina tem se dado na forma de um “lawfare”. Ela sofre um processo judicial pelo qual já foi condenada em duas instâncias, e que pode ser engavetado pelo TJ-SP, sem que haja chance do caso sequer ser reexaminado. Além de pagar indenização, nossa colega teve censurado um livro, “Religião e Conflito” – do qual é co-autora e co-organizadora. Ademais, Melvina e outros alunos e pesquisadores que pesquisam o mesmo tema têm denunciado ataques pessoais (com ameaças anônimas, hackeamento de material eletrônico etc), numa guerra psicológica truculenta, típicas do bolsonarismo, usada para intimidar e tentar bloquear a pesquisa do tema.
A motivação especificamente técnico-jurídica utilizada no lawfare não é de mérito, mas (como de costume) ocorreu a partir de um aspecto secundário em uma de suas publicações. Em um capítulo de sua autoria no livro “Religião e Conflito”, a professora Melvina discorre sobre o modus operandi dos deputados pastores, apoiadores de Damares e dos agentes (missionários e simpatizantes) da Atini em suas campanhas em favor dos PLs (1057 e 119). Como teriam dificuldades de encontrar suporte à causa que defendem junto à comunidade científica, particularmente entre antropólogos e indigianistas, eles recorreriam com frequência a falsificações na titulação de apoiadores. Melvina apresenta uma revisão de textos, discursos e materiais (públicos, disponíveis nos anais da Câmara e nas transcrições de suas Comissões e de várias audiências públicas) com tal prática.
O livro de Melvina é de 2016, mas o conteúdo de seu capítulo já havia sido desenvolvido na forma de artigo acadêmico alguns anos antes. Foi apenas no governo Bolsonaro, entretanto, que uma ação “por danos morais” foi movida contra Melvina e sua publicação. A autora da ação é uma outra docente – apoiadora dos PLs. Embora não seja antropóloga, ela é uma das citadas erroneamente (como “antropóloga da USP”) em vários de tais artigos e discursos de parlamentares e pastores.
Livre debate é incompatível com censura do Judiciário
É direito de cada um opinar a respeito do tema de pesquisa da professora Melvina e da linha de argumentação de seus trabalhos, considerando-os mais ou menos adequados. É direito de qualquer um, (inclusive da autora da ação) discordar das hipóteses, argumentos usados e conclusões de suas publicações. Indignar-se com as mesmas e, portanto, publicar artigos ou livros contestando-as e procurando prova-las erradas é também direito sagrado de cada um de nós. Contra-ataques no terreno da academia, que tem espaço suficiente para o debate intelectual livre, mesmo quando duro e rigoroso é sempre salutar e enriquecedor. Pois permite o confronto de hipóteses, testes, provas e contra-provas – conflito de ideias sem o qual não se produz conhecimento científico. Tudo no mais pleno espírito voltairiano (mesmo que discorde de você, defenderei à morte o seu direito de dize-lo).
A Adunifesp é seção sindical do Andes-SN que representa a categoria docente na Unifesp. Como tal, ela não tem a pretensão de entrar no mérito desse debate – para o que tampouco teria competência ou expertise.
A Adunifesp, entretanto, tem sim posição firme e inequívoca sobre uma questão: é inaceitável que o poder Judiciário intervenha neste debate e decida à mão pesada o que pode e o que não pode ser publicado. Afinal, trabalhos acadêmicos (inclusive os de Melvina – publicados por revistas e editoras competentes e renomadas na esfera acdadêmico-científica) são criteriosamente escrutinados, revisados e aceitos por pareceristas e editores qualificados. Não cabe ao Judiciário, nem a parlamentares, pastores ou ONGs – nenhum deles com a devida competência – avaliar se tal ou qual passagem do capítulo do livro da professora seria mais ou menos apropriada.
A professora Melvina Araújo, companheira filiada há anos à Adunifesp, é pesquisadora séria e reconhecida em seu campo de atuação. A Adunifesp defende resolutamente seu direito de publicar sua pesquisa, sem ser prejudicada, importunada ou mesmo ameaçada judicialmente.
E é justamente por isso que a Adunifesp apoia e subscreve a nota do Cebrap. Ela nos alerta que
“[…] o Poder Judiciário, ao julgar procedente a ação movida por uma das atrizes envolvidas […] ofere[ce] justificativa com implicações de delimitação do que seja uma análise científica e seus procedimentos apropriados, restringindo a circulação do conhecimento. […] Preocupa[-nos] não apenas porque o Poder Judiciário não é foro adequado para o julgamento da produção de conhecimento científico, mas porque a história recente do país mostrou os custos de negligenciar os critérios internos à produção desse conhecimento.”
Ataque a todos nós: Universidade e pesquisa científica
É evidente que tais ataques não são apenas à profa Melvina e à sua pesquisa individualmente. Mas representam um ataque ao conjunto da categoria docente, à liberdade de cátedra e de pesquisa acadêmico-científica. Isso tudo num contexto em que ataques à Universidade têm sido perpetrados já há anos pelo bolsonarismo e sua área de influência, apoiados inclusive por amplos setores do próprio Judiciário e Legislativo brasileiro.
Não é a primeira vez, lembremos, que a Universidade Pública, sua comunidade acadêmica e a produção científica são vítimas de intervencionismo abusivos, particularmente do Judiciário. Sobretudo desde a onda conservadora que levou ao Golpe de 2016. Lembremos do caso de nosso saudoso professor Carlini (EPM), ou do também saudoso professor Cancelier, reitor da UFSC.
Adunifesp convoca a comunidade universitária à luta
Por conta disso, a Adunifesp lança uma campanha de solidariedade à professora Melvina pela reversão de sua condenação judicial e pelo fim da censura à sua obra. O que implica neste exato momento em demandar do Tribunal de Justiça de SP que não arquive o processo. E que – se não quiser rever seu resultado – envie-o imediatamente ao STJ e STF para que o caso possa ser novamente julgado. Uma demanda que precisa ser feita emergencialmente[1].
Convocamos a todos a participarem dessa campanha de solidariedade contra (mais um) “lawfare” antiacadêmico; uma campanha que tem também um caráter de luta em defesa da Universidade Pública, de sua autonomia e de sua liberdade de cátedra e de pesquisa científica.
[1] Adunifesp e o DCE-Unifesp convocam uma reunião para a formação de um Comitê de Solidariedade à profa Melvina no dia 03/08/2024. Pedimos aos interessados em participar para preencherem o formulário (https://forms.gle/QRDXDAZJyAjdajmV7)
Fonte: Adunifesp