Relatório inédito revela pelo menos 216 mil vítimas de pedofilia da Igreja Católica na França desde 1950
Não é apenas o número de menores vítimas de agressões sexuais, estimado em seis dígitos, que causa o efeito de uma bomba atômica na instituição comandada por Francisco. O relatório Sauvé, que leva o nome de Jean-Marc Sauvé, vice-presidente do Conselho de Estado da França, que preside a investigação, também revelou nesta terça-feira (5) em Paris a contabilidade dos “predadores sexuais”: entre “2.900 e 3.200 homens”. Um dogma intocável da Igreja foi quebrado no processo: o “segredo da confissão”
Uma verdadeira bomba no centro de uma das instituições mais antigas do planeta: foi assim que a Igreja Católica da França recebeu os resultados da chamada “Comissão Sauvé”, que investiga o abuso contra menores na instituição entre os anos 1950 e os dias de hoje, e que publicou suas conclusões impressionantes na manhã desta terça-feira (5).
O resultado de dois anos e meio de trabalho desta Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (Ciase), presidida por Jean-Marc Sauvé, foi entregue publicamente, em Paris, ao episcopado francês e às ordens e congregações religiosas, na presença de representantes de associações de vítimas.
As cerca de 2.500 páginas do relatório independente darão primeiro origem a um inventário quantitativo. Um dado expressivo foi revelado por Sauvé: o número de “predadores sexuais”, avaliado em “2.900 a 3.200”, homens – sacerdotes ou religiosos – no período de 70 anos, uma “estimativa considerada mínima”.
O relatório também ofereceu um panorama estimado do número vertiginoso de vítimas – menores na época dos fatos: cerca de 216 mil crianças foram abusadas dentro da Igreja Católica nas últimas sete décadas. As conclusões “exigem medidas muito fortes”, declarou Sauvé no início de seu pronunciamento em Paris.
Paralelamente a essas investigações, o estudo é completado por uma vasta pesquisa realizada entre 30.000 pessoas representativas da população francesa, a fim de quantificar o abuso sexual dentro da Igreja no contexto mais geral de abuso em toda a França.
Segundo a pesquisa, o número total de vítimas chega a 330.000 menores, se forem somados os “leigos em missão da Igreja” [na educação católica e nas organizações juvenis em particular]. O presidente da comissão de inquérito, Jean-Marc Sauvé, lembra, no entanto, que os números publicados podem ser baixos em relação à realidade, ou seja, apenas a ponta do iceberg, porque as vítimas ouvidas se manifestaram por vontade própria, após uma convocação de testemunhas. A questão é saber quantos decidiram não participar voluntariamente da investigação.
Segredo da confissão quebrado
Um dos dogmas mais caros da Igreja Católica – considerado um sacramento -, foi quebrado durante as investigações da comissão independente, segundo as declarações de Jean-Marc Sauvé durante a apresentação do relatório em Paris: o segredo da confissão.
Sauvé recomendou ainda, no papel de presidente do inquérito, que a igreja “evite no futuro a concentração de poderes nas mesmas mãos”, e que pessoas laicas – “homens e mulheres” – possam ter acesso às posições de decisão dentro da Igreja Católica. Ele estimou ainda, durante a coletiva, que a instituição religiosa “até o início dos anos 2000 mostrava uma profunda indiferença e até crueldade para com as vítimas”.
A “reparação” financeira para as vítimas é defendida na França. O presidente da Conferência Episcopal Francesa, Eric de Moulins-Beaufort, expressou “sua vergonha”, “seu medo” e pediu “perdão” às vítimas.
“Esta é a sua cruz”
O relatório da comissão Sauvé é observado com interesse no Vaticano, segundo o correspondente da RFI em Roma, Eric Sénanque. Ao receber na sexta-feira passada o último grupo de bispos franceses em visita a Roma, o papa Francisco voltou a tocar na profunda crise dos crimes sexuais que foi detalhada no relatório Ciase desta terça-feira.
“Esta é a sua cruz”, disse o papa, ciente do que estava em jogo. Durante a reunião com Francisco, o presidente da conferência dos bispos da França fez um resumo ao soberano pontífice sobre a gravidade do assunto, mas ainda sem conhecer os detalhes das revelações da Comissão Sauvé.
Em fevereiro de 2019, durante a excepcional cúpula sobre pedofilia no Vaticano, o papa pediu “medidas concretas e eficazes” das Igrejas locais diante do problema.
Em julho passado, em uma entrevista ao jornal francês La Croix, o cardeal secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, apelou a “não ter medo da verdade” após as revelações do relatório.
Agressões sexuais de religiosos contra crianças no mundo
O jornal católico La Croix desta terça-feira (5) destaca que além das revelações sobre a Igreja Católica, os detalhes dos resultados deste trabalho inédito contribuem para conhecer a realidade das violências sexuais cometidas contra menores na França. De acordo com o documento, 10% dos franceses teriam sofrido este tipo de agressão durante a infância.
O jornal lembra que para atacar e abafar escândalos, as instituição católicas tradicionalmente redigiram seus próprios relatórios, mas investigações independentes sobre pedofilia na Igreja Católica se multiplicaram no mundo nos últimos tempos.
Nos Estados Unidos, um relatório do John Jay Criminal College, de Nova York, publicado em 2004, colocou 5.000 padres, 4% do clero americano, sob suspeita de terem abusado de mais de 10.000 menores, entre 1950 e 2002. Na Irlanda, um relatório produzido por uma comissão nacional revelou que mais de 2.000 menores foram abusados em 216 estruturas administradas por ordens religiosas.
Mas a investigação independente mais ampla foi provavelmente a realizada na Australia. Em 2017, o governo australiano recolheu testemunhos de 8.000 pessoas que tinham sofrido abusos durante a infânica, entre 1950 e 2010. Entre as estruturas investigadas, 58% eram religiosas e entre elas 61% católicas. 7% dos padres católicos australianos foram acusados de abusos sexuais.
Em alguns casos os trabalhos de investigação levam a sanções, como no caso do relatório John Jay, que teve como consequência a condenação de 252 padres nos Estados Unidos. Na Austrália e no Canadá, sistemas de indenização das vítimas foram instituídos. Mas grande parte das recomendações produzidas por este tipo de documento, não é aplicada.
Fonte: RFI