Relatório revela impunidade crônica, violência estatal e conluio de interesses privados
A denúncia feita pela relatora especial da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Mary Lawlor, ecoa como um lembrete amargo da realidade crônica do Brasil: um país onde a desigualdade e a violência caminham lado a lado, sustentadas por um Estado historicamente incapaz de proteger os mais vulneráveis. O informe, apresentado nesta sexta-feira (31) e enviado a governos do mundo inteiro, expõe uma rede intrincada de impunidade e conivência policial que não apenas permite, mas frequentemente incentiva ataques brutais contra defensores de direitos humanos.
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“O Brasil é um país no qual os seis homens mais ricos possuem a mesma riqueza que os 50% mais pobres da população; e milhares de pessoas, principalmente jovens, negros e homens da classe trabalhadora, são mortos pela polícia todos os anos”, introduz Lawlor em seu relatório, contextualizando o problema dentro de um quadro de desigualdade estrutural e racismo institucional. A análise, fruto de uma visita ao Brasil em abril de 2024, será discutida publicamente no Conselho de Direitos Humanos da ONU em fevereiro, quando o governo brasileiro terá a chance de responder formalmente às acusações.
Conivência estatal e violência organizada
Entre 2019 e 2022, 169 defensores de direitos humanos foram assassinados no Brasil, segundo dados das organizações Terra de Direitos e Justiça Global. Para Lawlor, os números representam mais do que estatísticas: são o reflexo de uma estrutura estatal onde as forças de segurança, ao invés de protegerem os cidadãos, frequentemente se tornam agentes de opressão. “O que marca muitos dos ataques contra defensores de direitos humanos no Brasil é o fato de que […] a sociedade em geral, e muitas vezes as autoridades, conhecem a identidade dos agressores”, destacou.
No entanto, como aponta o relatório, a falha sistemática na investigação e punição dos crimes alimenta a impunidade. Casos conhecidos frequentemente não ultrapassam a fase investigativa devido a interesses políticos e econômicos que bloqueiam qualquer tentativa de justiça. Esse fenômeno não é novo: como Lawlor argumenta, ele remonta ao período colonial, cujas marcas ainda hoje moldam a distribuição desigual de terras, a exclusão social e o racismo estrutural.
O papel do Movimento Invasão Zero e o legado do bolsonarismo
Uma das denúncias centrais do relatório é o destaque ao Movimento Invasão Zero, criado em 2023 na Bahia e liderado por Luiz Uaquim. Embora o grupo alegue defender os direitos de propriedade, Lawlor argumenta que suas ações vão além disso, configurando-se como uma milícia violenta com apoio político explícito e vínculos com forças policiais. A entidade teria protagonizado ataques contra indígenas, quilombolas e outros defensores de comunidades tradicionais, em um cenário agravado pela liberalização do porte de armas promovida durante o governo de Jair Bolsonaro.
A relatora também aponta para o papel da Frente Parlamentar Invasão Zero, liderada pelo deputado federal Luciano Zucco, que coordenou um inquérito parlamentar contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para Lawlor, a perseguição ao MST reflete a continuidade de uma agenda anti-direitos enraizada nos anos de Bolsonaro, mas cujas raízes históricas ultrapassam qualquer ciclo político recente. “A forma como os negócios são feitos no Brasil, impulsionados em grande parte pelo capital estrangeiro, contribui para a insegurança e para as violações dos direitos humanos de forma mais ampla”, explica.
Um histórico de violência: do colonialismo à modernidade
O informe da ONU conecta a atual violência contra ativistas a um legado histórico de opressão. Desde a escravidão até a ditadura militar (1964-1985), a exclusão social e a violência de Estado sempre foram instrumentos de manutenção do poder. Esse histórico, segundo Lawlor, moldou o ambiente atual, em que aqueles que lutam por reformas progressivas—seja em questões de terra, direitos indígenas ou igualdade de gênero—são vistos como inimigos a serem eliminados.
O ponto central da crítica é a incapacidade do Brasil de romper com essa tradição de repressão e criar estruturas permanentes de proteção para defensores de direitos humanos. “Os sucessivos governos não conseguiram criar as estruturas necessárias para proteger adequadamente os defensores e combater as causas fundamentais dos riscos que eles enfrentam”, afirma a relatora. Ela reconhece, contudo, que o governo Lula tem buscado reverter parte dos danos, mas enfrenta barreiras profundas, muitas delas estruturais.
Recomendações e o desafio da reconstrução democrática
Entre as recomendações, Lawlor sugere que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declare publicamente a proteção dos defensores de direitos humanos como uma prioridade nacional e articule os estados para cooperarem nessa missão. Ela também propõe o fortalecimento dos órgãos estaduais de proteção aos direitos humanos, com financiamento adequado para garantir sua efetividade.
O desafio não é apenas político, mas profundamente social e cultural. Como observou a socióloga brasileira Florestan Fernandes, “o Brasil moderno nunca foi verdadeiramente capaz de romper com as estruturas de dominação herdadas de seu passado colonial”. As causas fundamentais da violência—racismo, concentração fundiária, desigualdade econômica—permanecem como pilares de um sistema que favorece a manutenção do status quo.
Um caminho possível
Embora o relatório pinte um quadro sombrio, a relatora vê uma oportunidade única no atual governo para iniciar mudanças significativas. A retomada das políticas de proteção a defensores de direitos humanos, a reversão da agenda armamentista e o compromisso com a reforma agrária progressiva podem ser passos importantes para enfrentar a crise.
Como afirma a própria Mary Lawlor: “O atual governo está tentando, embora enfrente obstáculos significativos. Entretanto, esses obstáculos só serão superados se o apoio aos defensores dos direitos humanos se tornar uma prioridade absoluta.”
Agora, a questão central é se o Brasil estará à altura desse desafio histórico. Afinal, como demonstra o passado, o preço da inércia é alto: mais vidas perdidas, mais direitos violados e um país cada vez mais distante dos ideais democráticos que diz defender.
Fonte: Semana ON