Cid Olival Feitosa

Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e Professor de Economia da UFAL

Não é novidade para ninguém que a sociedade brasileira sempre conviveu com elevados índices de desigualdade socioeconômica. Essa realidade, aliada à ausência de políticas públicas voltadas à segurança alimentar, produziu (e produz) grande contingente de pessoas com fome.

As raízes desse problema remontam à nossa formação histórica-econômica-social-política, que sempre privilegiou uma pequena parcela da população, em detrimento da grande maioria dos não proprietários. Com menor nível de renda, a maior incidência da fome ocorre sobre pessoas negras, de baixa escolaridade, do sexo feminino e localizadas nas regiões Norte e Nordeste do país.

A situação começou a mudar a partir dos anos 2000, quando a pobreza e a fome passaram a fazer parte do centro da política econômica do governo federal. Um conjunto articulado de políticas públicas foi implantado, com diversas ações, tais como: i) elevação da renda dos mais pobres, por meio do aumento real do salário mínimo; ii) maior oferta de alimentos, com o fortalecimento de programas de apoio à agricultura familiar; iii) programas de transferência de renda e assistência social (Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada); iv) programas de inclusão produtiva; v) fortalecimento da merenda escolar, com o Programa de Aquisição de Alimentos; etc.

Essas medidas levaram o Brasil a reduzir, entre 2002 e 2013, em 82% o número de pessoas em situação de subalimentação[i]. Ademais, o número de moradores em situação de insegurança alimentar grave caiu de 8,2%, em 2004, para 3,6%, em 2013. A melhora desses indicadores levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a declarar, pela primeira vez na história, que o Brasil tinha saído do Mapa da Fome[ii].

Depois de diminuírem significativamente ao longo do período citado, a fome e a insegurança alimentar voltaram a crescer no Brasil. Segundo dados do IBGE, em 2018, eram quase 85 milhões de pessoas que estavam sem acesso pleno e permanente a alimentos, um aumento de mais de 60%, em cinco anos. Além disso, 10,3 milhões de brasileiros se situavam em um quadro de insegurança alimentar grave, correspondendo a 5% dos moradores do país (ver tabela 1).

A volta ao Mapa da Fome, quando a insegurança alimentar grave atinge 5% da população do país, tem relação direta com as políticas econômicas adotadas pelo governo brasileiro após o golpe de 2016. Desde aquele momento, a orientação ideológica neoliberal tem provocado estragos severos para o conjunto da sociedade. O que se tem observado é um brutal ataque à classe trabalhadora e aos mais pobres, com aumento do desemprego, perda de direitos trabalhistas, queda na renda das famílias e desmonte dos mecanismos de proteção social. No plano da segurança alimentar, a redução de recursos orçamentários e o enfraquecimento das políticas de apoio à agricultura familiar têm levado não apenas ao aumento da fome e da pobreza, mas também à inflação de alimentos.

As ações do governo Bolsonaro têm agravado ainda mais uma situação que já era bastante preocupante. Para se ter ideia, no seu primeiro dia de governo, o presidente extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), fragilizando as medidas de combate à fome em todo país. Os ataques se deram também com as políticas de austeridade fiscal, com cortes de recursos em praticamente todos os setores da economia, sobretudo na área social. O Orçamento de 2021, por exemplo, corta em 35% os recursos para a agricultura familiar.

A combinação da política econômica austera, que visa eliminar a atuação do Estado na economia, com a crise sanitária tem provocado efeitos ainda mais perversos. Pesquisa da VigiSAN (2021)[i], mostrou que mais da metade da população está em situação de insegurança alimentar (55,2%, em 2020, contra 36,7%, em 2018). São quase 117 milhões de pessoas sem acesso permanente a alimentos, em situação de insegurança alimentar leve ou moderada. Desse total, 19,1 milhões de brasileiros estão passando fome, o que corresponde a 9,0% da população do país.  

Gráfico 1: Brasil – Situação de Segurança Alimentar – 2004-2020

Fonte: VigiSAN (2021)

Os dados são bastante preocupantes. Entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar grave cresceu 8% ao ano. Entre 2018 e 2020, o aumento da fome foi de 27,6%, corroborando o intenso retrocesso econômico-político-social vivenciado sob a gestão Bolsonaro. A situação só não foi mais dramática porque o Congresso Nacional aprovou um auxilio emergencial de R$ 600,00 para a população mais vulnerável, contrariando a proposta do governo federal que era de R$ 200,00. Para 2021, a situação não parece promissora, já que a equipe econômica continua com sua política de corte de gastos e o novo auxílio emergencial aprovado varia entre R$ 150,00 e R$ 350,00, bastante aquém das necessidades básicas da população.

A solução para o problema já é conhecida, passa por políticas públicas que pretendam, de fato, erradicar a fome no país. No momento atual, passa também por um programa de transferência de renda robusto, como aconteceu ao redor do mundo, que garanta a sobrevivência das pessoas no período pandêmico.  Mas esse não parece ser o objetivo do governo. Para ele, as metas fiscais se sobrepõem a qualquer medida que vise a redução da fome, da pobreza, das iniquidades e a promoção da vida e do desenvolvimento econômico e social do país.


[i] Link de acesso à pesquisa: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf


[i] http://mds.gov.br/area-de-imprensa/noticias/2014/setembro/brasil-sai-do-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas-segundo-fao

[ii] Link de acesso ao documento da FAO. http://www.fao.org/3/i4030e/i4030e.pdf

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