Um dos policiais que já foi obrigado a participar dos eventos fez um desabafo: “Isso é constrangedor, sou de religião de matriz africana. Utilizaram a máquina da igreja para a pregação da doutrina de uma linha religiosa. O Estado não é laico?”
Na manhã de terça-feira (27), cerca de 400 integrantes da Guarda Civil Municipal (GCM) de São Paulo se reuniram no templo da Igreja Universal, no bairro da Freguesia do Ó. No encontro, falaram os comandantes da guarda, a secretária municipal de Segurança Urbana, Elza Paulino de Souza, e o pastor Roni Negreiros, responsável pelo programa Universal nas Forças Policiais (UFP).
Procurada pela coluna, a secretaria municipal explicou que o evento foi uma reunião de trabalho e não citou motivação religiosa. Os primeiros oradores realmente trataram de temas administrativos. O pastor Negreiros, no entanto, falou da Bíblia, sugeriu oração aos presentes e detalhou a estratégia da Universal para abordar as forças policiais brasileiras.
Em áudio a que a coluna teve acesso com exclusividade, o religioso explicou aos guardas que a UFP é um programa de “assistência espiritual, social e valorativo” para trabalhar com todo o sistema de segurança do país. “Forças Armadas, órgãos de Justiça, órgãos de segurança pública”, explicou ele.
“Eu tenho hoje 20 mil pessoas me ajudando, entre bispos, pastores, obreiros, servindo vocês”, detalhou Negreiros aos integrantes da GCM. Ele garantiu que para esse fim “todos os templos da Universal estão cedidos no Brasil”. A iniciativa também tem âmbito internacional e é posta em prática nos países em que a Igreja Universal está instalada: África do Sul, Portugal, Estados Unidos, México e Argentina.
Mais à frente, Negreiros citou a liberdade religiosa, mas em seguida induziu a plateia a ler a Bíblia. “Vocês têm garantia de liberdade religiosa, liberdade constitucional, mas se você alimentar sua fé faz bem para todo mundo”, diz ele. “Há 27 anos atrás (sic) me apresentaram esse livro aqui (referindo-se à Bíblia)”.
Continuou, afirmando que, na Bíblia, “Deus falou que os pensamentos dele são mais altos e mais sábios que os dos homens”. Segundo Negreiros, o livro tem resposta para tudo. Recitou um versículo segundo o qual quem lê a Bíblia “tem um coração novo”.
Pouco antes de encerrar sua participação, sugeriu uma prece. “Meus queridos policiais, façam só uma oração: ‘Senhor, troque meus pensamentos por pensamentos bons, para que meus passos dirigidos por esses pensamentos sejam passos que me guiem para um amanhã melhor. Oração simples de fazer, não tem religião nenhuma”, observou. (Ouça trechos do áudio abaixo).
Um dos guardas que participou da reunião falou à coluna em condição de anonimato e reclamou que a GCM tenha privilegiado a Universal no contato com os servidores. “Isso é constrangedor, sou de religião de matriz afro. Utilizaram a máquina da igreja para a pregação da doutrina de uma linha religiosa”, criticou. “O Estado não é laico?”.
Ações como essa se repetem em vários estados brasileiros.A ofensiva da Universal para disseminar seus valores nas forças policiais foi revelada em maio pelos jornalistas Gilberto Nascimento e Tatiana Dias, no site The Intercept.
Na quinta-feira (22), a coluna noticiou reunião de 700 PMs de São Paulo no templo da Universal da avenida Brigadeiro Luis Antonio. O deputado estadual Reis (PT) enviou requerimento de informações ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), pedindo explicações.
A frequência e a capilarização dos encontros impressionam.
Na mesma terça-feira em que a GCM paulistana se reunia no templo da Freguesia do Ó, evento semelhante ocorreu em Brasília, com a Polícia Militar do Distrito Federal. O comando convocou soldados para uma palestra sobre saúde que foi ministrada no templo da Universal da Asa Sul.
À coluna, a assessoria de imprensa da PM-DF informou que a reunião foi feita naquele local porque comporta a quantidade de integrantes. Segundo a nota, esses espaços, como acontece com auditórios de escolas, faculdades, clubes, “são cedidos gentilmente à corporação em reconhecimento ao bom trabalho prestado à comunidade”. A assessoria garantiu que “não há nenhuma ligação com a igreja nem caráter religioso”.
No site da PM, a informação é diferente. Segundo o relato publicado, ao fim do encontro “foi realizado um ‘momento de reflexão’ com todos os presentes, com citação de passagens bíblicas e lembrando que o contato com Deus traz benefícios para todos os seres humanos, além de enfatizar a importância de confiar Nele”.
Um dos policiais que participou da reunião comentou, sob anonimato: “Nunca vi um curso leigo com mais oração e pregação que este”. Muitos reclamaram reservadamente que foram compelidos a participar de um culto, já que a palestra constava do quadro de trabalho semanal, que relaciona compromissos obrigatórios da PM-DF.
A antropóloga Livia Reis, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto de Estudos da Religião (Iser) observa com preocupação essa parceria entre a Universal e as polícias. “O que a gente vê é o Estado promovendo uma política de intolerância religiosa, na medida em que nesses espaços estatais estamos vendo a proeminência de uma só religião”, define.
Para ela, a prática vai na contramão da obrigatoriedade de todas as instituições estatais se manterem neutras em relação às diversas denominações religiosas. “Na medida em que os policiais frequentam esses espaços fardados, não estão sendo apenas indivíduos, mas são representantes de uma instituição estatal. É a adesão do Estado a uma moralidade religiosa exclusivista, que ataca outras religiosidades”, lamenta.
Livia acredita que os governantes devem ser chamados à responsabilidade. “O chefe das polícias são os governadores e das guardas municipais são os prefeitos, eles têm que garantir a laicidade das corporações”, aponta. “Mas isso interessa a eles?”.
O artigo 19 da Constituição diz que “é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Nos casos de interesse público, é preciso que haja projeto previamente estabelecido e plano de trabalho inserido em termo de cooperação. No caso das organizações religiosas, só é permitida a parceria para ações que não tratem de sua atividade-fim, a religião.
Coordenador nacional do programa que aproxima a Igreja Universal das forças de segurança, Roni Negreiros foi major da PM maranhense antes de se tornar pastor. Na reunião com a GCM de São Paulo, além de discorrer sobre temas religiosos, ele informou que os templos podem ser usados pelos policiais e guardas em qualquer caso de necessidade.
“Quer fazer uso do banheiro mais limpo? Vai na igreja. Não vai no bar, não. Vai na igreja! Vai lá: pastor: ora por mim, independente de sua religião”, convidou.
Em sua fala, Negreiros também tratou de alertar sobre o problema dos guardas que, após terem se tornado pais em relacionamentos anteriores, têm que gastar boa parte do salário com pagamento de pensões. Aconselhou-os a evitar novos relacionamentos.
“Vocês são assediados porque são autoridades, porque são bonitos, porque são éticos, porque a instituição de vocês é valorosa. Mas o público lá fora que assedia vocês estão (sic) querendo emprego”, afirmou. “A verdade é essa: as mulheres jovens e bonitas que assediam o Agapito (Agapito Marques, inspetor superintendente da GCM), elas estão querendo emprego”.
O programa Universal nas Forças Policiais existe desde 2018, mas mesmo antes a igreja já promovia reuniões com policiais de vários estados em seus templos.
A Igreja Universal tem ligação direta com o partido Republicanos, cujo presidente, Marcos Pereira, é bispo dessa denominação religiosa.
Fonte: Pragmatismo Político