Com reivindicações que dialogam com anseios do povo, movimento coloca a classe trabalhadora no centro político do país

Cerca de 18,5 mil metalúrgicos da indústria automobilística dos EUA estão com seus braços cruzados. É a primeira vez em seus 88 anos de história, que o UAW (United Auto Workers, sindicato dos trabalhadores da indústria de automóveis dos EUA) realiza uma greve unificada, coordenada e de uma só vez contra as “Três Grandes” corporações automotoras dos EUA: Ford, General Motors (GM) e Stellantis (conglomerado que unificou a Chrysler, Jeep, Ram, Fiat entre outras).

Elas juntas têm 25 grandes fábricas espalhadas pelo país onde 150 mil operários filiados ao sindicato produzem quase metade dos carros vendidos nos EUA. São trabalhadores que, organizados nas seções UAW locais, estão mobilizados: os que ainda não pararam, estão preparados para fazê-lo, quando o comando da greve os convocar. Com reivindicações de recuperação salarial e de direitos e palavras de ordem contra os “bilionários exploradores”, a greve ganhou a simpatia da maioria do povo – pesquisa Gallup tem mostrado apoio de 75% aos grevistas, a despeito da massacrante oposição da grande mídia que, como de costume procura assustar a população e joga-la contra o sindicato e sua greve.

Ousadia nas reivindicações
Dois meses antes do contrato coletivo (de cinco anos) expirar, o sindicato apresentou uma pauta de reivindicações. Mas dessa vez, os executivos das empresas se depararam com algo com o qual não estavam (mais) acostumados.

A demandas eram mais amplas e mais exigentes do que nas últimas décadas – período em que direções do UAW foram se tornando mais condescendentes e acovardadas. Elas acostumaram o sindicato a fazer cada vez mais concessões ao patronato sem sequer tentar impor condições ou contrapartidas.

Desta vez, contudo, o sindicato exigiu que as empresas devolvam aos trabalhadores as concessões feitas a elas no passado. Para começar demanda-se agora um reajuste salarial de 40%: metade disso já em 2023 e o restante em parcelas nos próximos quatro anos. É um índice ousado. Como ousada tem sido a nova e impactante onda de grandes mobilizações sindicais que se espalharam pelo país nos últimos semestres.

A onda de greves e seus determinantes
Desde fins de 2018, uma nova geração de greves em diferentes ramos da economia começou a se desenvolver. Ainda naquele ano, professores do ensino público fundamental de vários estados realizaram sua maior greve em décadas. Sua revoltante insatisfação gerou empatia entre o povo em geral e sua luta para recuperar salários da corrosão inflacionária parece que ajudou a inspirar a classe trabalhadora de todo país.

Com a recuperação econômica pós-pandemia e os efeitos da expansão fiscal (auxílios emergenciais) que tomaram corpo já em 2021 – as coisas evoluíram. Por um lado, empresas de vários setores começam a notar um comportamento mais hostil dentre segmentos de seus empregados, sobretudo aqueles com um pouco mais de qualificação. Fartos das condições indignas e insalubres de trabalho (assédio, precariedade) e de salários eles começaram a mostrar primeiro resistência à volta ao trabalho e depois uma crescente disposição à pedir demissão. Esse fenômeno, apelidado de “a grande resignação”, fez com que o número de trabalhadores desempregados para cada nova vaga aberta, caísse de um (nos anos anteriores à pandemia) para meio a partir de meados de 2021. A maior escassez de profissionais tornou empresas mais vulneráveis e parcelas significativas e referenciais, ainda que não necessariamente majoritárias, das categorias profissionais mais seguras para lutar por melhores condições de trabalho.

Por outro lado, a Covid ajudou a elevar fortemente os serviços de entrega online. E a brutal exploração dos trabalhadores desse ramo, empurrou-os à luta. O que gerou, por exemplo, a greve inédita na Amazon (e a formação – após uma dramática batalha contra o reacionarismo anti-sindical da empresa e do governo – de um sindicato).

Ademais, a aceleração inflacionária engatilhada pelas quebras nas cadeias de oferta agregada internacional – decorrentes tanto da pandemia como da guerra da Ucrânia – destruiu ainda mais o poder de compra dos salários. O descontentamento entre os debaixo veio se elevando conforme multiplicam-se notícias brutal elevação na desigualdade de renda, sobretudo com a forte recuperação lucrativa das grandes corporações – empurrada por generosos pacotes governamentais (da crise 2008 à pandemia) e pela própria queda do custo real do trabalho – e da produtividade, que cresceu com a profusão de aplicativos, inteligência artificial e outras inovações. Historicamente, avanços tecnológicos introduzidos para substituir mão-de-obra tendem a tensionar o movimento sindical.

Todos esses fatores produziram massa crítica para a uma nova onda paredista em 2023. Apenas no 1º semestre, quase 400 mil trabalhadores participaram de greves – de servidores municipais a pilotos de avião, passando por trabalhadores da rede de cafés Starbucks, mineiros, funcionários hospitalares, roteiristas de Hollywood ou servidores municipais. O número total de grevistas aproximaria-se de um milhão se os (340 mil) trabalhadores da (transportadora) UPS e os ferroviários não tivessem a deflagração de suas greves suspensas no último minuto – a primeira por um acordo negocial, a segunda por uma proibição legal pelo Senado (ratificada por Biden). E em geral, tais movimentos têm obtido conquistas ousadas, como os quase 40% de aumento dos pilotos ou os 36% da UPS (ambos parcelados pelos próximos 5 anos).

A greve do UAW (mesmo que, dos seus 150 mil associados nas “Três Grandes”, apenas uma parcela chegue a paralisar efetivamente), assim, torna o ano de 2023 aquele com maior número de grevistas de desde o final dos anos 1970. Claro que isso ainda não se compara à média, superior aos 2 milhões de grevistas ao ano, do período 1935 – 19791. Agora, mais importante que isso tudo, o movimento do UAW marca a adesão de um significativo contingente fabril à onda paredista, que até então era dominada por trabalhadores dos ramos de serviços. A despeito da redução do papel do setor na economia do país, o ramo automotivo ainda tem um papel de muita relevância na cadeia produtiva e de valor do país.

Recuperação das perdas passadas: salários e benefícios
Se a radicalização da pauta reivindicatória do UAW foi influenciada por tal maré montante na luta sindical e de classes, ela também corresponde às necessidades urgentes da categoria, que veio amargando enormes e seguidas perdas a cada contrato dos últimos 30 anos ou mais. Por isso, além da reposição de 20% de perdas inflacionárias e de ganhos de produtividade desde o último contrato (2019), parte do 40% de reajuste reivindicado refere-se apenas à devolução da parcela dos salários que trabalhadores tiveram de doar de volta, os “givebacks” para “salvar as empresas” durante a crise financeira de 2007 a 2009 – que a direção sindical à época aceitou.

Embora o governo (Obama) houvesse resgatado as “Três Grandes” da falência, dando a elas substancial ajuda, não houve qualquer exigência de compromisso delas em manutenção de empregos nem tampouco na devolução das concessões feitas pelos trabalhadores. As multinacionais fizeram o de sempre: embolsaram a generosa colaboração – de seus operários e do erário público. Com a recuperação econômica, voltaram a ter lucros recordes, com os quais distribuíram dividendos aos acionistas, recompraram ações para valoriza-las e assim acelerar ainda mais a elevação dos salários e bonificações de seus executivos. Aliás, um dos argumentos da atual campanha salarial da UAW, os CEOs das “Três Grandes” concederam a si mesmos aumentos de mais de 40% desde 2019, aproximando seus salários anuais aos R$ 30 milhões – 362 vezes mais do que a média salarial de seus funcionários. O lucro combinado das Três Grandes foi de US$ 21 bilhões apenas no primeiro semestre deste ano e já ultrapassou um quarto de trilhão de dólares nos últimos dez anos.

O sindicato reivindica também retorno de inúmeros benefícios que as direções sindicais (sobretudo na crise 2007-9, mas mesmo antes disso) foram abrindo mão. Querem de volta os planos de pensão e de saúde qu e contratos passados abriram mão. Exigem o retorno do mecanismo de reajuste inflacionário de salário (“COLA”) e o fim do sistema de dupla contratação: trabalhadores que ocupam a mesma função mas recebem salários e benefícios diferentes – algo que, além de injusto, divide e enfraquece a luta da categoria. Reivindica a efetivação do enorme número de “temporários” e o estabelecimento da semana de 32 horas com salário de 40h. E demanda de que a transição à produção de veículos elétricos respeite garantias sindicais2.

Décadas de colaboracionismo e a nova direção no UAW
Shawn Fain, o atual presidente do UAW, foi por anos eletricista na Chrysler, tornando-se mais tarde um dirigente em sua seção local, liderando suas delegações no voto contra as várias concessões contratuais feitas pela Comissão Executiva (Executive Board) nacional do sindicato3. Crítico à postura submissa ao empresariado por parte da cúpula que dirigiu o UAW por muitas décadas, ele passou a impulsionar movimentos de base de oposição sindical dedicados particularmente a informar criticamente os trabalhadores sobre as enormes perdas impostas pelos novos contratos de 2008-9. Em 2019, junto com ativistas de base – vários deles veteranos – ele ajudou a criar o UAWD (Unite All Workers for Democracy), que advogava por mais democracia no sindicato e pela participação da base na eleição do Comitê Executivo. A burocracia dirigente, diziam, só logrou manter-se no controle por tantas décadas utilizando-se de manobras antidemocráticas contra a participação da base.

A campanha vinha ganhando momento ao vir à tona cerca de dez anos atrás um escândalo de corrupção envolvendo alguns membros da alta cúpula do UAW – que tiveram papel preponderante no acordo de salvamento da Chrysler em 2009 e (conforme soube-se depois) “receberam sua parte” também. Embora os ativistas do UAWD considerassem que o problema central da cúpula sindical era sua orientação política colaboracionista (com as empresas e com o alto aparato do partido Democrata) e não o episódio de corrupção em si, eles aproveitaram a situação de crise para pressionar e garantir a realização de um plebiscito oficial sobre a alteração das regras eleitorais em 2021.

No plebiscito, venceu a proposta de substituir a tradicional nomeação dos 14 membros da Comissão Executiva (incluindo a presidência) por uma eleição de base (cada associado tem direito a um voto). Finalmente, em 2022, o UAWD e outros agrupamentos locais lançaram uma chapa de oposição, com Fain na presidência, cujo lema era “reconquistar a confiança das bases, colocando-as de volta ao comando do UAW, e acabar com o sindicalismo de subordinação aos interesses das grandes empresas”. Em março de 2023, surpreendente e ineditamente a oposição venceu (a 1ª eleição direta no UAW) numa disputa apertadíssima: 69.386 a 68.881 votos.

Passado e presente: a estratégia da greve 2023
Mal assumiram seus postos, os novos dirigentes tiveram de lidar com a preparação à luta pela renovação dos contratos nas “Três Grandes” que expiraria em meses. Na elaboração da pauta de reivindicações já se sabia das dificuldades para as empresas aceitarem-na. Isso forçou a categoria a preparar-se a uma longa e dura batalha. Os recursos do sindicato permitiram montar um Fundo de Greve suficiente para garantir a sobrevivência dos grevistas e suas famílias por algumas semanas caso a intransigência patronal exija paralisação mais longa. Dentre as fileiras do sindicato, debateu-se os possíveis cenários e adversidades na definição da estratégia de uma possível greve.

Visando resgatar a história do UAW em sua fase inicial, a campanha pelo novo contrato 2023-2027 referencia-se na combatividade das heroicas greves de Ocupação (Sit-Down Strikes) dos anos 1930. É a partir delas, explica a direção atual, que se formulou o modelo desta greve, chamada de “Stand-Up Strike” (Levante-se): no início apenas algumas fábricas selecionadas param de maneira a, por sua posição estratégica na cadeia de produção do complexo automotivo, provocar o máximo de danos nos fluxos de insumos às demais fábricas. De acordo com a direção do sindicato, isso visaria manter a capacidade de pressão sobre os executivos das empresas na negociação, minimizando o desgaste e os riscos (de demissão etc) na base sindical. E anúncio das novas fábricas é feito sempre no momento, o que pegaria as empresas de surpresa, dificultando sua ação preventiva contra a greve.

Há quem critique tal opção, preferindo que o sindicato realizasse uma paralisação total de imediato. Muitos questionam se de fato as primeiras fábricas paradas (pouco mais de 10% do total) sejam suficientes para travar ou efetivamente atrapalhar a produção das demais. O que permite às empresas manter estoques crescentes dando a elas fôlego numa longa disputa contra os grevistas. Ademais, o elemento surpresa sobre qual nova unidade entrará em greve, atinge também os grevistas que podem ficar desorientados e reticentes. Em todo o caso, Fain tem explicado que, se as negociações não evoluem, “novas fábricas entrarão na greve até que, se necessário, todas elas sejam paralisadas”, com seus 150 mil trabalhadores em greve total.

Assim, em 15 de setembro, vencido o contrato anterior na véspera e, portanto, tendo expirado o prazo dado pelo UAW às empresas responderem sua pauta, a greve foi deflagrada com a paralisação apenas de uma unidade de cada uma das “Três Grandes”. Cerca de 13 mil trabalhadores cruzaram os braços e juntaram-se aos piquetes em frente aos portões da GM em Wentzville, Missouri; da Chrysler/Jeep em Toledo, Ohio; e da Ford em Wayne, Michigan. Pronunciamentos diários, atos e campanha nas redes sociais passaram a ser feitos pelo sindicato numa greve que passou a atrair a atenção de todo o país, com a simpatia da população e o ódio da mídia. No decorrer da semana seguinte, apenas a Ford iniciara de fato negociações (aceitando já parcialmente algumas reivindicações).

Por isso, na manhã do dia 22/09, o presidente da UAW em seu novo pronunciamento avisou que “hoje ao meio-dia, todo os centros distribuidores de partes da GM e Stellantis entrarão na greve até que essas companhias caiam na real e aceitem sentar à mesa de negociação”. A paralisação expandiu-se assim a novos 5,6 mil trabalhadores em 38 unidades espalhadas em 20 estados. Dessa vez nenhuma planta de produção, mas apenas grandes armazéns distribuidores de peças e partes. Tratam-se, segundo a grande imprensa, de mais um ponto nevrálgico aos negócios das empresas por serem responsáveis por parte substancial do lucro, não apenas das duas multinacionais, mas de toda a rede de revenda de carros novos e de oficinas autorizadas. O sindicato explica que a nova escolha justificaria-se também pelo fato de concentrar, dentre a maioria seus quase 6 mil trabalhadores sindicalizados, justamente muitos temporários e de nível inferior, cuja condição precária diferenciada é tema central da pauta reivindicatória.

A luta de classes no centro do país
O país inteiro passou a debater o assunto. Trump e outros republicanos têm atacado o sindicato – dizendo que a greve vai levar trabalhadores ao desemprego. Ele convocou uma manifestação próxima a uma das fábricas paralisadas para com seu discurso fascistizante e xenófobo culpar imigrantes e a China pela desgraça dos trabalhadores, enquanto defende a eliminação de quaisquer restrições às empresas os ultra explorarem.

O presidente Biden, que como outros democratas se diz pró-sindicatos, fez pronunciamentos dizendo torcer “por uma solução boa para ambos os lados”. O que fez Fain – que disse não apoiar nem Biden, nem Trump – responder que “queremos menos discurso e mais ação”.

Mas Fain ao mesmo tempo convidou Biden a ir à porta de fábrica em greve. Convite aceito, Biden tentará transformar os piquetes em comício demagógico. Pior, ele certamente tem uma agenda para controlar e moderar o sindicato para frustrar a luta dos trabalhadores. Também é fato que Biden se encontra numa sinuca de bico, com o desafio das novas eleições em um ano. Ele e o partido Democrata representam os interesses das grandes empresas, além de serem impulsionadores de guerras imperialistas. E têm uma política agora voltada aos carros elétricos em projetos que usam bem menos trabalhadores e muitos terceirizados – algo inaceitável aos sindicatos.

Ao anunciar as novas adesões, o sindicato tem chamado a população a ajudar e participar dos piquetes – algo que já vem ocorrendo nas cidades das fábricas paradas. Fain responde à mídia, que o questiona se a greve não atrapalhará a vida do povo americano ao atacar a economia, se não forçará alta nos preços: “As empresas elevaram os preços dos carros em 35% nos últimos 4 anos. Não foi devido aos salários – que subiram apenas 6%. Esta greve diz respeito a uma luta que é tanto do UAW quanto de toda classe trabalhadora do país e do mundo. É a nossa luta comum contra a classe dos empresários bilionários que embolsam todo o lucro que nós produzimos e que sempre nos deixam para trás. Nos deixam no desespero para pagar as contas do mês”. A vitória do movimento depende de sua (do sindicato e de sua nova direção) independência frente aos dois partidos do grande capital. Por isso, para além do discurso – que até agora tem sido firme e inspirador -, os próximos passos da nova direção do UAW serão decisivos.


1 Como tampouco podem ser comparadas as condições de luta da época (até os anos 1970), quando 34% dos trabalhadores empregados era sindicalizado – contra o atual pouco mais de 10%. Os ataques institucionais à atividade grevista e sindical de Reagan em diante, além do burocratismo da cúpula sindical são fatores que explicam o enfraquecimento da mobilização sindical. Ademais, o aumento da importação líquida de carros e a deslocalização produtiva – a transferência pelas multinacionais das linhas de montagem a países com mão de obra mais barata – desindustrializou parte dos EUA. Isso, junto com avanços técnicos que economizam mão de obra, reduziu o número trabalhadores na indústria manufatureira norte-americana em geral, e particularmente na automobilística. Ao fim dos anos 1970, esta última chegou a empregar o dobro do contingente atual; o número de sindicalizados ativos em fábricas do UAW chegou a ser quase o triplo.

2 Nas instalações da Tesla, o bilionário Elon Musk – que tem recebido enormes incentivos em verbas públicas à produção de seus veículos elétricos, “verdes” – não aceita sindicato (recusa-se a contratar operários sindicalizados) e só se utiliza de trabalho precário e ultra explorado. Um modelo que as “Três Grandes” querem imitar.

3 O UAW, bem como a maioria dos sindicatos gerais nos EUA, é, de fato, de base internacional – já que tem seções no Canadá e nos EUA.

Fonte: O Trabalho

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