Maurício Moura

Os crescentes casos de perseguição a docentes em todo o território nacional revelam padrões preocupantes de censura pedagógica que demandam análise urgente1. Este fenômeno transcende episódios isolados, configurando um projeto articulado de cerceamento ao direito constitucional da liberdade de cátedra, com graves implicações para o futuro da educação pública.

Casos emblemáticos

Em 2024, em Araraquara, a professora Adrienne Morelato foi vítima de perseguição institucional da direção da escola. O episódio ocorreu após aulas sobre A Terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa, autor que revolucionou a literatura brasileira com suas reflexões existenciais. Após esse episódio, já em 2025, a gestão escolar induziu alunos a assinarem abaixo-assinado contra a docente por exibir a série Morte e Vida Severina, da Rede Globo, baseada na obra homônima de João Cabral de Melo Neto, poeta pernambucano conhecido por retratar a realidade social nordestina1. O episódio gerou reação da comunidade acadêmica, o que culminou em uma carta aberta assinada por mais de 500 alunos, professores e pesquisadores acadêmicos em defesa de Adrienne. A carta está aberta a novas assinaturas aqui.

Adrienne é mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho), pesquisadora, poetiza, escritora e ensaísta com quatro livros publicados, além de diversas antologias. Coleciona prêmios e menções honrosas tanto com sua poesia quanto com seu trabalho acadêmico. Foi, ainda, finalista do Prêmio Jabuti, o mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro.

Já na Escola Municipal Major Olímpio, em Ilhabela, o professor César Cruz foi desligado após aula sobre concepções temporais que integravam mitologia iorubá, o mito grego de Cronos e obras de Goya, pintor espanhol que retratou a brutalidade do poder, e Rubens, mestre do barroco flamengo2. O vereador Gabriel Rocha (PL) liderou campanha difamatória na Câmara Municipal contra o professor, que chegou a ser acusado de “diabólico”3. Para o vereador, o quadro “Saturno devorando um filho”, de Goya, é “libidinoso e perturbador”. A secretária de Educação da cidade, Lídia Lúcia Sarmento de Lima, ainda abriu um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o professor, por supostamente ter mostrado material impróprio para os alunos.

Perseguição pedagógica como método

Em 2023, uma professora do Rio de Janeiro foi advertida por discutir As Veias Abertas da América Latina do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, obra que analisa estruturas coloniais de poder, taxada como “doutrinação esquerdista” por grupos conservadores4.

No Paraná, um docente de sociologia enfrentou processo administrativo em 2024 por abordar teorias de Pierre Bourdieu sobre violência simbólica, considerada “subversão doutrinária” em escolas cívico-militares5.

Já em Minas Gerais (2022), a exibição de Saturno Devorando um Filho de Goya também foi censurada sob alegação de “conteúdo perturbador”, ignorando seu valor como crítica à violência do poder6.

Políticas estruturais de censura

Estes episódios articulam-se com políticas implementadas por Renato Feder, secretário de Educação de São Paulo. Sócio da Multilaser, Feder transferiu para a rede pública seu modelo de padronização curricular com foco em testes estandardizados, esvaziando a qualidade e autonomia docente7. Durante sua gestão como secretário no Paraná (2019-2022) no governo Ratinho Junior, implantou 208 escolas cívico-militares8 — modelo com aumento de assédio moral a professores, além de racismo, abuso de poder e até desperdício de recursos públicos9.

Esta agenda replica-se nacionalmente através da militarização escolar priorizada por governadores como Tarcísio de Freitas (SP) — que anunciou 16 escolas cívico-militares — e Ratinho Junior (PR), e de leis de “neutralidade ideológica” inspiradas no movimento Escola sem Partido, que busca criminalizar discussões sobre desigualdade racial e de gênero10. Como demonstra relatório preliminar da ONU, essa política cria “preocupante militarização da educação” mesmo após mudanças governamentais11.

A doutrina do “inimigo interno” nas escolas

A expansão das escolas cívico-militares reintroduz na educação uma prática histórica das Forças Armadas: a doutrina do “inimigo interno”. Desenvolvida durante a ditadura militar (1964-1985), essa visão enquadra movimentos sociais, intelectuais e educadores como “subversivos” a serem controlados12. Sob políticas educacionais atuais, ela se recicla ao classificar tanto professores como agentes de “doutrinação ideológica” (ao abordarem temas como desigualdade racial ou pensamento crítico) quanto estudantes como potenciais “ameaças” ao questionarem autoridade ou reproduzirem valores familiares dissonantes da ordem militarizada.

Mecanismos de Implementação

Em escolas militarizadas, protocolos de vigilância transformam a comunidade escolar em alvo de monitoramento11. O caso do professor César Cruz, de Ilhabela, exemplifica como narrativas africanas são tratadas como “práticas diabólicas” — na lógica do “inimigo interno”, culturas não hegemônicas são vistas como risco à segurança nacional3.

No Paraná, docentes relatam que aulas sobre teorias de Bourdieu geraram investigações por “subversão doutrinária”, equiparando análise sociológica a crime8. Manuais didáticos em colégios militares omitem violações da ditadura, enquanto ditadores militares como Castelo Branco são celebrados. A ECEME (Escola de Comando do Exército) ainda leva seu nome, naturalizando a perspectiva de que “inimigos” devem ser eliminados13.

Consequências Educacionais

Estudos indicam elevada autocensura docente em escolas militarizadas, com professores evitando temas como ditadura ou racismo por medo de represálias13.

Quando alunos de Araraquara protestaram contra a remoção da professora Adrienne Morelato, a direção caracterizou o ato como “distúrbio psicológico coletivo”, tratando a discordância como patologia1.

Como alerta a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a militarização substitui vínculos educacionais por hierarquias de suspeita, onde estudantes são incentivados a delatar professores, o que causa total erosão da confiança pedagógica11.

A prática viola diretrizes da ONU sobre proteção de escolas14, configurando grave retrocesso democrático.

Respostas institucionais e resistência sindical

A gravidade do quadro motivou a realização de audiência pública no Congresso Nacional em outubro de 2023, convocada pelas deputadas Talíria PetroneErika Hilton e Luciene Cavalcante15. O coordenador do MEC, Erasto Fortes Mendonça, alertou que “na medida em que um professor é perseguido, é o estudante que perde”16.

Organizações como o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) emitiram nota conjunta repudiando as perseguições a Adrienne Morelato e César Cruz, classificando-as como “absurdas e ilegais” e destacando que “professores necessitam de liberdade de cátedra. Não podem ser perseguidos, ameaçados, cerceados”1. A Associação Nacional de História (ANPUH)3 e o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp)17 também emitiram notas de repúdio.

Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) mobilizou paralisações históricas em abril de 2025, com expressiva adesão em escolas de Pernambuco e atos em dez estados18. No Ceará, alunos entregaram cartas escritas por eles mesmos denunciando os impactos da censura na aprendizagem, enquanto na Paraíba, escolas da região metropolitana aderiram maciçamente aos protestos. No Rio Grande do Sul, o CPERS aprovou moção de solidariedade ao professor Guilherme Runge, vítima de perseguição por lutar contra o racismo em Cachoeirinha, e lançou a campanha “Não Venda Minha Escola” contra as parcerias público-privadas19.

União em defesa do conhecimento

Os casos de Araraquara e Ilhabela demonstram que a resistência à censura pedagógica exige uma mobilização coordenada entre sindicatos, comunidade escolar e academia10. A comunidade escolar deve unir-se aos sindicatos de todas as categorias, seguindo o exemplo do SJSP e Fenaj que incorporaram a defesa da educação pública em suas pautas. Paralelamente, a comunidade acadêmica precisa documentar sistematicamente esses ataques, produzindo pesquisas que revelem seu impacto no aprendizado e na formação cidadã.

Como ocorreu em Cabo de Santo Agostinho (PE), onde professores denunciaram defasagem salarial de 40% e más condições das escolas, a pressão local sobre prefeituras e governos estaduais é vital19. Essa articulação ampla é o único antídoto contra projetos que buscam esvaziar o sentido humanista da educação, transformando-a em mero treinamento para testes padronizados.

Defender Guimarães Rosa, Galeano ou Goya não é doutrinação: é garantir o direito fundamental das novas gerações ao patrimônio artístico e filosófico que moldou a civilização humana em sua diversidade. Como alertou o relator da ONU Bernard Duhaime, a educação deve combater o racismo religioso e preservar a memória das lutas por direitos — missão impossível sob censura10.

Notas e referências


  1. SJSP; FENAJ. SJSP e Fenaj solidarizam-se com a professora Adrienne Morelato, de Araraquara, e o professor César Cruz, de Ilha Bela, e repudiam as odiosas perseguições e punições que sofreram . Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo. São Paulo: 18 jun. 2025. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
  2. BUSINARI, Maurício. Aula com mitologia gera demissão de professor em SP: ‘Fui acuado e exposto’. UOL Educação. São Paulo: 14 mai. 2025. ↩︎
  3. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA – SÃO PAULO. Moção de repúdio ao assédio moral sofrido pelo professor César Augusto Mendes Cruz de Ilhabela-SP. Instagram da ANPUH-SP. São Paulo: 28 fev. 2025. ↩︎ ↩︎ ↩︎
  4. GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. L&PM. 2010. ISBN 9788525420695. ↩︎
  5. BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Editora Vozes. 2015. ISBN 9788532620538. ↩︎
  6. CARTA CAPITAL. Quem é Renato Feder, o empresário liberal que deve assumir a secretaria de educação em SP. Carta Capital. São Paulo: 19 nov. 2022. ↩︎
  7. PAIVA, Deslange.  Feder, indicado para Educação em SP, foi alvo de protestos por sala de aula sem professor e implementou 207 escolas cívico-militares no PR. G1. São Paulo: 29 nov. 2022. ↩︎
  8. CARRICONDE, Gabriel.  Escolas cívico-militares passam por questionamentos da AGU, denúncias e desgastes no Paraná. Brasil de Fato. Curitiba: 12 abr. 2024. ↩︎ ↩︎
  9. MOURA, Fernanda. Escola Sem Partido: origens e ideologias. Ciência Hoje. nov. 2018. ↩︎
  10. CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO. Relatório preliminar da ONU incorpora denúncias da Campanha sobre militarização das escolas e perseguição a professores. São Paulo: 14 abr. 2025. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
  11. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. Intrínseca. 2014. ISBN 9788580573978. ↩︎
  12. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final – Volume 1. CNV. Brasília: 10 dez. 2014. ISBN 9788562816223. ↩︎
  13. BRASIL, Luana. Censura e vigilância: Professores relatam rotinas da educação militarizada. O Tempo. 29 nov. 2021. ↩︎
  14. GLOBAL COALITION TO PROTECT EDUCATION FROM ATTACK. Guidelines for Protecting Schools and Universities from Military Use during Armed Conflict. GCPEA. Nova Iorque: mar. 2014. ISBN 9780615981586. ↩︎
  15. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissões debatem nesta segunda-feira perseguição ideológica a professores em salas de aula. Agência Câmara. Brasília: 30 out. 2023. ↩︎
  16. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. MEC debate perseguição ideológica a professores. Agência Gov. Brasília: 31 out. 2023. ↩︎
  17. APEOESP. Nota de repúdio: Perseguição a professor em Ilhabela. Instagram da Apeoesp. São Paulo: 5 mar. 2025. ↩︎
  18. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO. PE: ​Primeiro dia de greve e 80% dos professores parados. CUT. Brasília: 16 mai. 2018. ↩︎
  19. CENTRO DOS PROFESSORES DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CPERS se solidariza com o professor Guilherme Runge e com a luta antirracista em Cachoeirinha. CPERS. 23 mai. 2025.

Fonte: Livre Pensamento

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