Para que o golpe de 1964 e modernas tentativas não se repitam, crimes devem ser apurados e criminosos devem ser punidos
Entre 31 de março e 2 de abril de 1964, as Forças Armadas, em conluio com parlamento e STF, protagonizaram um dos maiores crimes da história nacional: emplacaram um golpe de Estado contra um presidente alçado ao cargo democraticamente, que governava segundo a Constituição.
Nos 21 anos seguintes, os militares, cuja presença na presidência deveria durar poucos meses, suspenderam o direito de voto presidencial e revezaram-se no poder. No período, coagiram e fecharam o Congresso, amordaçaram o STF, cassaram partidos políticos, oprimiram sindicatos e organizações da sociedade civil, impuseram a censura, suspenderam o habeas corpus e empreenderam um regime de terror baseado na perseguição à oposição, no sequestro, na tortura, nos desaparecimentos forçados, nas prisões injustas, além de instituírem um modelo de governança sustentado num amplo apoio colaborativo com outras ditaduras sul-americanas servis aos EUA, acumpliciado em um estado generalizado de corrupção sequer conhecido devido ao controle arbitrário das instituições.
Passadas décadas, os riscos de um novo golpe voltaram com o último presidente, chegando ao ápice em 8 de janeiro. Regressaram, porque os traidores de 64 empurraram goela abaixo uma Lei de Anistia que livrava da responsabilização penal os agentes do estado que praticaram crimes lesa-humanidade.
Até 2016, o Brasil se empenhava em reconhecer tais violações, desculpava-se com as vítimas, reparando-as simbolicamente (formalidade irresponsavelmente suspendida nos últimos anos). Independentemente disso, jamais foi capaz de levar algozes à Justiça e tampouco reformou adequadamente suas instituições, despoluindo-as de vieses autoritários, hoje sentidos desproporcionalmente pelos setores mais vulneráveis da sociedade. Condescendeu com a covardia e, ao fazê-lo, não consolidou uma memória inabalável, capaz de passar incólume ao revisionismo retrógrado e ao fascismo latente.
Por isso, superado o perigo iminente, é hora de união na defesa do Estado Democrático de Direito. Sem democracia não há dignidade humana, estabilidade ou paz. E para que o cataclisma sessentista e modernas tentativas não se repitam, crimes precisam ser apurados e criminosos devem ser punidos. Verdade sem justiça não vivifica memória. Reparação sem reformas institucionais não imuniza contra golpes. Ditadura nunca mais!
*Marcelo Uchôa é conselheiro da Comissão de Anistia. Presidente da Comissão da Memória, Verdade, Justiça e Defesa da Democracia da OAB-CE. Membro da ABJD e Grupo Prerrogativas. Professor da UNIFOR.
Fonte: Brasil de Fato