No dia último dia 10 de fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que concede autonomia ao Banco Central (BC), o PLP 19/2019, e estabelece mandatos fixos para o presidente e diretores da instituição, não coincidentes com o do presidente da República.
As justificativas para a autonomia repousam na ideia de que, dessa forma, os diretores do Banco ficam “blindados” de interferências políticas na tomada de decisões, podendo implementar as medidas que julgarem necessárias no combate à inflação. Ainda segundo os seus defensores, livre da ingerência política, a instituição adquire maior credibilidade junto a investidores nacionais e estrangeiros, garantindo maior segurança jurídica ao sistema financeiro e favorecendo a estabilidade da economia.
A ideia subjacente a essas premissas não é nova, encontra guarida na tradição liberal de reduzir a participação do Estado na economia e na hipótese simplista de que a inflação é a única variável que importa para a política monetária. Esses elementos ganham novos contornos quando divulgados pela grande imprensa que coloca a questão como um problema de escolha entre decisões “técnicas” (ditas como sensatas, racionais, livres de interesses) e decisões políticas (interpretadas como interesseiras e danosas à coletividade).
Nada mais vil e mentiroso do que esses argumentos, pois as decisões do Banco Central afetam todo o conjunto da sociedade, não podendo ser classificadas como “meramente técnicas”! Aliás, não existe neutralidade em nenhuma decisão econômica. O que resta saber é se as medidas adotadas visam a beneficiar a maioria da população ou os grandes conglomerados e empresários do setor financeiro.
Além da falácia da neutralidade ou do “véu da tecnicidade”, a autonomia do BC, por si só, não é elemento suficiente para atrair investimentos, pois não existe essa relação de causalidade, conforme tentam vender seus defensores. Ademais, o projeto aprovado revela diversos problemas para o conjunto da sociedade brasileira. Primeiro, os mandatos não coincidentes rompem com a lógica democrática, na medida em que o projeto político eleito nas urnas fica subordinado às decisões dos dirigentes do Banco, não escolhidos pelo voto. Segundo, o objetivo unidirecional de controle da inflação, não deixando espaço para a busca do aumento do emprego, como ocorre com bancos centrais ao redor do mundo, compromete o bem-estar da população do país. Terceiro, o insulamento do BC elimina a possibilidade do governo realizar uma política monetária coordenada com outras políticas macroeconômicas, como a política fiscal, prejudicando a busca pelo desenvolvimento nacional.
Não bastassem esses fatores, devemos lembrar que um dos instrumentos utilizados para controlar a inflação é o manejo da taxa básica de juros, a Selic, que é definida a partir das expectativas do mercado, após consulta a analistas de bancos, gestores e instituições diversas do mercado financeiro. Não parece curioso o fato de o Banco Central ouvir o mercado financeiro, que tem interesses diretos sobre a temática, para definir a taxa básica de juros da economia? Você acredita mesmo que esses agentes financeiros, “isentões”, irão defender uma política de juros que os prejudique?
Outro elemento a se registrar é que dentre as atribuições do BC está a supervisão e regulação do sistema financeiro nacional, isto é, dos bancos! Não por coincidência, os presidentes do Banco Central do Brasil têm sido oriundos do mercado financeiro. Nos últimos trinta anos, por exemplo, somente o Alexandre Tombini, no governo Dilma Rousseff, destoou dessa tradição, por ser funcionário de carreira da instituição.
E não para por aí! Esse presidente supostamente “técnico” e “neutro”, que, “por acaso”, está umbilicalmente vinculado ao setor financeiro, passa a regular seus antigos patrões e, posteriormente, volta a esse mesmo mercado com um conjunto de informações privilegiadas, prestando consultoria a diversas instituições privadas. O único óbice ao exercício da sua atividade profissional junto ao setor financeiro é o cumprimento de uma quarentena por um “longo” período de 6 (seis) meses, após o exercício do mandato!
Durante a votação em plenário, alguns parlamentares do campo progressista tentaram atenuar os efeitos danosos da autonomia do BC, com a proposição de algumas emendas ao projeto original. Dentre elas, estavam: i) estabelecer como um dos objetivos do BC o fomento ao pleno emprego (Gleisi Hoffmann – PT-PR); ii) reservar quatro das nove vagas da diretoria do Bacen a servidores de carreira do banco (Danilo Cabral – PSB-PE); iii) alterar a quarentena de seis meses para dois anos e limitar a remuneração a receber do Bacen ao teto do INSS ou ao teto do serviço público para os servidores efetivos (Tarília Petrone – Psol-RJ). Todas as proposições foram rejeitadas por ampla maioria dos parlamentares.
Como pode ser observado, as emendas rejeitadas são bastante reveladoras dos interesses envolvidos nesta decisão, vendida pela grande imprensa como “isenta” e bastante “favorável” à economia brasileira. Como disse o economista Paulo Nogueira Batista Jr, em artigo publicado no Jornal do Brasil, em 2020, “um pouco de reflexão e informação é suficiente para mostrar que a narrativa tradicional contém meias verdades, falsas promessas e omissões significativas”.
Com a autonomia do BC aprovada, amplificam-se ainda mais as relações escusas entre a autoridade monetária e o setor financeiro. Resta-nos questionar, conforme fez a grande mestra Maria da Conceição Tavares, professora aposentada do curso de economia da UFRJ, em entrevista ao programa Roda Viva, em 1995: “independente de quem?”.
Cid Olival é Professor de Economia da Ufal, Economista, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.