Cerca de mil eletricistas devem deixar a CEEE após privatização da empresa pelo governador Eduardo Leite (PSDB)
Os gaúchos precisam se preparar para uma ameaça que vai chegar com o verão: os apagões. “Existe uma possibilidade de 90% (de quedas de energia). Se tivermos aquele calorão esperado e pessoal sem treinamento adequado, vários municípios correm um sério risco.”
Quem avisa é a presidente do Sindicato dos Eletricitários do Rio Grande do Sul (Senergisul), Ana Maria Spadari. O gatilho dos blecautes previstos seria o abandono da companhia por quase mil funcionários, entre eles muitos eletricistas, técnicos e pessoal da área operacional, que vão sair até o fim do ano.
Seria consequência das decisões tomadas pelo Grupo Equatorial Energia, que comprou a antiga CEEE-Distribuidora no leilão de privatização realizado no simbólico dia 31 de março deste ano.
Controlada pelo bilionário Jorge Paulo Lemann, segundo homem mais rico do país com um patrimônio estimado em R$ 94 bilhões, segundo o Top Ten da revista Forbes, a empresa possui largo currículo de apagões no Norte do país, entre os quais um de quatro dias em Teresina, no Piauí, e também no Pará e em Alagoas.
Terceirizados e sem experiência
Aqui, 998 funcionários, muitos com larga experiência da antiga CEEE-D, vendida por apenas R$ 100 mil pelo governo Eduardo Leite (PSDB), vão abandonar a empresa dentro de poucas semanas. Eles aceitaram o Plano de Demissões Voluntárias proposto pela Equatorial.
Ana Maria observa que, no lugar dos quase mil servidores treinados que vão deixar a companhia, entrará pessoal terceirizado e sem experiência.
“Não se forma um eletricista em menos de cinco anos”, diz ela. “É uma área que requer treinamento e conhecimento. Vou dar o exemplo de uma regional que existia, a de Bagé. O conhecimento (dos eletricistas) é tão grande, que eles já sabiam até os atalhos para chegarem nas grandes propriedades e tinham a ideia exata do que tinha acontecido em função de vendaval, chuva ou qualquer outro evento.”
Evasão massiva em Porto Alegre e Pelotas
Em lugar dos profissionais tarimbados, Ana Maria explica que os novos donos estão contratando empresas terceirizadas, com pessoal oscilando entre 18 e 25 anos que não é oriundo do setor e “sem qualquer prática”.
“Imagine entregar uma ordem de serviço para um rapaz desses se deslocar ao Interior sem ter a mínima noção de onde poderá estar o problema. Então (calcule) o tempo que isso vai levar, a qualidade do serviço que vai ser prestado. Sabemos que, em vários municípios, isso está causando revolta da população”, repara.
Em nota, o Sindicato dos Engenheiros (Senge-RS) demonstra que também está apreensivo. Depois de citar o reajuste das tarifas, acentua que “o próximo impacto a ser sentido pela população será a redução da qualidade técnica”. Para o Senge, um reflexo da diminuição “de 52% do quadro funcional e da terceirização em massa”.
Risco maior nas praias
A debandada de quadros atingiu especialmente Porto Alegre, Pelotas e Bagé. Há temor em relação ao Litoral Norte – região para onde se deslocam mais de um milhão de pessoas durante as festas de fim de ano e as férias.
“Vamos pegar Palmares, Mostardas, todo o Litoral com a sobrecarga que tem no verão. Pelo que se sabe, a empresa está trabalhando com mão de obra terceirizada”, acentua a presidente do Senergisul. “Nos preocupa muito o risco a que estão submetidos esses mais de 500 terceirizados, jovens sem nenhuma qualificação para o trabalho… Risco no setor elétrico sempre existiu, mas em percentual muito baixo pelo conhecimento e toda a vivência no setor.”
“Anota aí: vai morrer gente”
Ela recomenda à população para ficar atenta. “Prestem atenção porque é gravíssima a situação que o Rio Grande do Sul deverá passar a partir de janeiro, quando acabam os seis meses de estabilidade dos trabalhadores da ex-CEEE-D.”
“Anota aí o que vou falar: vai morrer gente na rede.” Quem alerta é alguém com atuação em chefias e duas décadas de casa. Será tratado aqui apenas como “Heitor”, nome fictício para proteger a identidade do técnico que teme represálias.
“Estão contratando qualquer coisa nas terceirizadas e quem opera não conhece mais a rede. A concessionária de energia não vende laranjas. Imagina um circuito eletrônico de uma televisão. Pois é, a rede da CEEE é como isso. Só que gigante” …
Heitor continua: “Imagina agora que muita coisa não está escrita. Precisa ser passada através de treinamentos para os mais novos. Isso não aconteceu. Logo, problemas simples como manobras para reduzir áreas atingidas, localização de defeitos na rede e sua solução tornaram-se muito mais difíceis e tendo, como consequência, um tempo de atendimento infinitamente maior”.
“Rede do centro da capital ficou sem ninguém”
Heitor prossegue descrevendo um panorama inquietante. “A equipe de manutenção de linhas de 14 pessoas, que atendia Pelotas e Rio Grande (Sul), mas também de Camaquã (Centro-sul do estado) até Chuí e Dom Pedrito (Extremo–sul, na fronteira com o Uruguai) toda se demitiu”, conta. “E ninguém que ficou sequer conhece o que eles dominavam.”
O quadro se reproduz em Bagé, também na região da Campanha. De 14 técnicos, das diversas áreas, todos saíram. “Inclusive plantão, que resolve as maiores encrencas”, agrega. E continua: “na Telecom, que cuida das fibras óticas, responsável pelas transmissões dos sistemas corporativos, dos seis caras de Pelotas, cinco se demitiram”.
Na Capital foi pior: “dos 21 técnicos, 20 saíram”. No seu relato, quase toda a seção que cuida dos sistemas de informática pediu as contas. E tem mais: “Todos os funcionários que cuidam a rede subterrânea de Porto Alegre se demitiram”.
A rede atende da Rodoviária à Usina do Gasômetro, abarcando grupos hospitalares, a Assembleia Legislativa, o Palácio Piratini, sede do governo estadual, o Comando Militar do Sul, todos os prédios em que funciona o Poder Judiciário, em suma o coração da Capital. “Ficou sem ninguém que saiba lidar com a tecnologia e seus defeitos”, anuncia.
PDV teve grande adesão
Aconteceu um êxodo dos operadores do sistema, especialmente os mais experientes. “Já houve reflexo nesse pequeno vento que deu no final de semana, deixando pessoal até 50 horas sem energia. Imagina num temporal”, provoca.
Na sua interpretação, a Equatorial pensou o PDV para o serviço administrativo que, em tese, deveria topar a oferta em maior número, mas o que houve foi “uma adesão massiva dos eletricistas e dos técnicos”. Mesmo assim, porém, os gestores “fizeram pouco caso, não trancaram ninguém”.
Para Heitor, “saiu o pessoal que se dedicava, que conhecia e tinha preparação. Ficaram os que não entenderam que serão descartados, embora entre eles haja muitos bons colegas”.
Ana Maria suspeita que os planos da Equatorial envolvam um enxugamento ainda mais radical, com a troca de profissionais da empresa por prestadoras de serviço. Dos três mil funcionários da ex-CEEE só acabariam restando cerca de 300. Estes treinariam os terceirizados durante dois anos e, após esse período, iriam para a rua também.
Quando faltou luz, a mídia ocultou a Equatorial
As acusações dos trabalhadores contra a companhia de Lemann vão além. Afirmam que a Equatorial enviou para o Nordeste duas subestações, uma que atendia Porto Alegre e outra a Pelotas. Ambas tinham a função de sustentar a rede em caso de panes, evitando cortes de muitas horas.
Queixam-se de que a firma, por exemplo, descumpre decisões da Justiça. “Não tem o menor respeito sequer pelo Judiciário. Ganhamos o julgamento do acordo coletivo aqui no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em março, por 8×0, e pasmem, até hoje a Equatorial não cumpriu a decisão”, ressalta Ana Maria.
“Recorreu a Brasília pedindo o efeito suspensivo, perdeu o efeito suspensivo, e simplesmente não tomou nenhuma atitude”, protesta. Ela diz que, em 80 anos de atuação do Sindicato dos Eletricitários no estado, nunca se viu coisa dessa natureza. “A sensação que passa é que o poder econômico é maior do que tudo. Estamos falando de um bilionário, do Lemann, um homem poderoso”, reage. “Talvez por este fato se ache o dono do mundo e acima da lei”, presume.
Também há reclamações sobre o não pagamento de auxílio-saúde e de vale-refeição e, ainda, sobre a permanência em uso do nome “CEEE”, deixando-se a marca “Equatorial” nas sombras. “O mais triste é que a grande imprensa, que fez um estardalhaço na venda da empresa, dizendo que fora um negócio fantástico, quando faltou energia ficou o tempo inteiro falando única e exclusivamente em CEEE…”
O quadro que se vislumbra é tão complicado que, para alguns que se afastaram, a Equatorial os chamará no primeiro temporal mais sério. Heitor não acredita. “Não entenderam que atendimento ao cliente deixou de ser prioridade? Que somente o custo fixo está sendo considerado?”, indaga.
Construída ao longo de 78 anos, vendida em 10 minutos
Fundada há 78 anos, a CEEE-D foi vendida em 10 minutos. Era mais um pedaço da estatal que faltava passar adiante após a privatização desencadeada durante o governo Antonio Britto (MDB) em 1997.
O negócio ocorreu após o governador tucano, com o apoio de sua bancada, derrubar a determinação constitucional de consultar os gaúchos através de plebiscito para aprovar a alienação. A entrega era uma exigência do governo Bolsonaro para permitir a adesão do estado ao regime de recuperação fiscal.
A CEEE-D atendia 1,6 milhão de clientes em 72 municípios da Região Metropolitana, Litoral e Campanha gaúchos. O grupo Equatorial é uma holding criada em 1999 para pegar carona na era das privatizações aberta pelo governo FHC.
Além de Lemann, seus acionistas são a Squadra Investimentos, Opportunity, fundado pelo banqueiro Daniel Dantas, e os gestores de investimentos Black Rock, dos Estados Unidos, e Verde, além de um fundo de pensão canadense.
Leite classificou a venda como “uma data histórica para o Rio Grande do Sul”.
OBS.: O Brasil de Fato RS solicitou manifestação do grupo Equatorial sobre o caso envolvendo sua operadora no Rio Grande do Sul. Até o momento da publicação da matéria não recebemos nenhuma resposta da empresa. Caso venha, será acrescentada ao texto.
Fonte: CUT Brasil