Investigação da rede americana CNN indica que civis assassinados enquanto tentavam obter alimentos foram soterrados pelo Exército israelense em covas rasas

Ammar Wadi saiu de casa sabendo que talvez não voltasse. Antes de caminhar em direção a um caminhão de farinha perto da passagem de Zikim, no norte da Faixa de Gaza, deixou um recado na tela do celular: “Peço perdão, mãe, se algo me acontecer. Quem encontrar meu telefone, por favor diga à minha família que eu os amo muito”. Semanas depois, a mensagem foi entregue aos seus familiares. Foi a última notícia que tiveram dele.

A história de Wadi se confunde com a de dezenas de palestinos que desapareceram naquele mesmo trecho de estrada, no início do ano, enquanto tentavam alcançar caminhões de ajuda humanitária em meio a disparos frequentes vindos de posições israelenses. Uma investigação da CNN americana — baseada em centenas de vídeos e fotos, imagens de satélite e entrevistas com motoristas de caminhões, testemunhas e ex-membros das Forças Armadas de Israel — delineia um cenário de morte, abandono e incerteza.

As imagens reunidas mostram corpos deixados a céu aberto, impossíveis de resgatar devido à militarização da área, e, em vários casos, empurrados por tratores militares para covas rasas, formadas por montes irregulares de areia. Em dois vídeos geolocalizados ao redor de Zikim, registrados em junho, cadáveres aparecem parcialmente enterrados ao lado de um caminhão de ajuda tombado. A atividade de tratores israelenses na região, revelada por imagens de satélite, se estende de meados de junho até o fechamento da rota de ajuda, em 12 de setembro.

‘Neutralizar ameaças’

Vídeos explícitos publicados em redes sociais, por sua vez, mostram palestinos carregando sacos de farinha enquanto fogem sob intenso tiroteio na região. Em um deles, uma pessoa é atingida pelas costas. Em outro, grupos tentam socorrer mortos e feridos enquanto os disparos continuam. Ainda assim, o Exército israelense afirma que não atirou “intencionalmente contra civis inocentes” e que abriu fogo apenas para “alertar” ou “neutralizar ameaças”.

Motoristas de caminhões que transportavam ajuda pelo trajeto descreveram à rede americana uma paisagem marcada pela presença constante de cadáveres em decomposição, com alguns afirmando ter visto tratores cobrindo corpos com terra. Trabalhadores da Defesa Civil relataram que, após dias sem poder entrar no local onde um caminhão foi cercado por palestinos famintos, encontraram cadáveres já dilacerados por cães. Conseguiram recolher apenas 15 corpos — com a ambulância cheia, cerca de outros 20 ficaram para trás.

— Ficamos chocados com a cena — disse um dos agentes da Defesa Civil. — Os (corpos) que recuperamos estavam decompostos. Claramente estavam lá há um tempo, havia sinais de que cães tinham comido partes deles.

Dois ex-militares israelenses também descreveram práticas semelhantes em outras áreas de Gaza. Um deles contou que nove corpos de palestinos desarmados permaneceram por dias ao redor de sua base no início de 2024, até que tratores foram acionados para empurrá-los para valas improvisadas, sem qualquer registro que permitisse identificação posterior. Outro disse que nunca recebeu instruções sobre como lidar com mortos palestinos e relatou que um trator foi usado para deslocar um corpo para uma cova rasa ao lado de uma estrada.

— Vejo pessoas mortas toda vez que passo por Zikim. Vi tratores israelenses enterrando os corpos — disse um motorista palestino. — Se você passasse por ali em julho, não teria como não ver; eu mantinha as janelas fechadas.

Crime de guerra

Especialistas em direito internacional ressaltam que as partes em conflito têm a obrigação de permitir que os mortos sejam identificados e enterrados com dignidade, e que mutilações ou tratamento indigno de corpos podem constituir crime de guerra. As Forças Armadas de Israel, por outro lado, negam usar tratores para “remover” corpos e dizem que sua presença em Zikim se deve a operações de engenharia ou neutralização de explosivos. Não responderam se tratores foram usados para soterrar cadáveres nem às perguntas sobre episódios específicos.

— O objetivo é evitar que os mortos se tornem desaparecidos e permitir sua memorialização, sobretudo por suas famílias — disse Janina Dill, co-diretora do Instituto de Ética, Direito e Conflitos Armados de Oxford, à CNN. — Além disso, se os corpos forem deliberadamente mutilados ou manuseados de forma a violar sua dignidade, isso pode constituir ‘ultraje à dignidade pessoal’, que é um crime de guerra segundo as Convenções de Genebra.

Nos últimos dois anos, o Exército israelense enterrou repetidamente corpos de palestinos em covas rasas e sem identificação em várias partes de Gaza. Isso inclui centenas de corpos descobertos no ano passado no Hospital Nasser, em Khan Younis, segundo autoridades locais, e a morte de 15 trabalhadores humanitários no sul do enclave em março. Tratores também foram usados em vários momentos da guerra para destruir sistematicamente cemitérios palestinos — pelo menos 16 deles foram profanados durante a ofensiva terrestre em Gaza.

As Forças Armadas não explicaram a destruição dos cemitérios identificados, mas disseram que às vezes “não há outra escolha” senão atacar locais que, segundo elas, seriam usados pelo Hamas para fins militares, e afirmaram que corpos foram retirados de alguns túmulos em tentativas de resgatar reféns. Enquanto isso, a busca por desaparecidos continua. Muitas famílias oscilam entre o temor do pior e a esperança de que seus parentes possam estar detidos por Israel ou deslocados em outra parte de Gaza.

— A ausência de Ammar (Wadi) deixa um vazio enorme. Perdê-lo é como perder uma parte de si — disse seu irmão, Hossam. — Se ele virou mártir, que Deus tenha misericórdia dele, mas, se estiver vivo, ao menos podemos manter a esperança.

Fonte: O Globo

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