Escalada de tensão na escola envolve pais radicais que defendem militarização e intimidam professores

história da orientadora escolar Juliana Andozio e do professor de Artes Andrei Dorneles repercutiu nos últimos dias, após imagens em que os professores aparecem sendo intimidados e perseguidos circularem pelas redes sociais. Os ataques partiram de um movimento político de extrema-direita em Florianópolis, liderado por pais de alunos, que agem contra docentes que se posicionam contra a militarização da Escola de Ensino Básico De Muquém, no bairro São João do Rio Vermelho.

Juliana é vítima de sucessivos episódios de perseguição, ameaça e intimidação. Esses casos renderam boletins de ocorrência, processos administrativos disciplinares e até uma condenação de um vereador da Capital de Santa Catarina. Andrei foi vítima da escalada dessa radicalização, sofrendo agressões físicas com socos e chutes, a poucos metros da escola, por um pai da comunidade.

Unidos no combate aos ataques extremistas e na luta pelo direito de exercerem sua atividade profissional, eles vivem, hoje, entre os aplausos de quem reconhece sua coragem e o luto pela perda de um chão que deveria formar crianças e jovens para um mundo desafiador.

Andrei se exilou por medo. Juliana continua na escola, mas permanece sendo alvo de ataques. Todos os dias, ela teme por um novo processo administrativo que a leve a perder o emprego, conquistado por meio de concurso público e que oferece estabilidade.

Há grupos de pais no Whats App que mantêm a intenção de derrubá-la desde que ela acolheu uma aluna trans, em 2023. A perseguição foi estimulada por um vereador da comunidade, localizada no norte da Ilha, uma das áreas mais populosas da cidade.

O vereador bolsonarista João Paulo Ferreira (PL-SC), conhecido por Bericó, usou suas redes sociais para incitar os ataques à professora, com discursos que mentiam sobre sua conduta. Um acordo conduzido pelo Ministério Público o obrigou a cumprir 70 horas de serviços comunitários.

Radicalização e militarização

Além dele, deputados também inflam o que a ala bolsonarista ideológica chama de “guerra cultural”. Esses discursos alimentam o movimento chamado “Pais Conservadores de Floripa”, que replicam as falas de autoridades e tratam os professores como inimigos da comunidade e dos estudantes.

O grupo extremista faz acusações graves e nunca comprovadas sobre a conduta dos professores agredidos. Juliana possui um drive com 43 pastas com registros de ameaças, em vídeos e imagens, desde 2023.

No caso de Andrei, que é homossexual e casado, as acusações que levaram à agressão e ameaça de morte envolvem denúncias de assédio feitas via redes sociais e em grupos de WhatsApp, sem qualquer comprovação material. Professor há 18 anos, ele teve que recorrer ao autoexílio com o suporte da família e hoje só consegue dormir com a ajuda de medicamentos.

Juliana considera que a agressão sofrida pelo colega foi, na verdade, uma etapa da escalada de violência e tensão. Sem qualquer suporte da Secretaria de Educação, pais radicalizados, alguns dos quais participaram dos acampamentos golpistas pós eleições de 2022, continuaram a lutar pela sua saída da escola desde que atendeu uma aluna trans, anos atrás.

Quando Andrei chegou, neste ano, foi visto como aliado, uma vez que se opôs ao projeto de militarização da escola.

Ele conta que, em resposta a um ato de apoio logo após o episódio de agressão, o grupo extremista se manifestou, sem questionar a conduta do professor. O foco permanecia a militarização, defendida em faixas e cartazes.

“Aí que a nossa ficha caiu. Eles viram que eu me coloquei contra o projeto de militarização e que eu falava nas salas de aula com os estudantes quando questionado”, disse Andrei.

“A doutrinação das crianças para a militarização é um projeto deles, eles não vão desistir”, completa Juliana.

O governo de Santa Catarina tem um projeto de escolas cívico-militares em curso. Mesmo após ser derrubado pelo Ministério da Educação, o Estado continua transformando unidades escolares em braços de um projeto questionado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) em Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).

Futuro incerto e saúde mental

O medo do presente e do futuro une Andrei e Juliana. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte-SC), há uma epidemia de violência em curso. Violência física, verbal e assédio, ameaças, denúncias e acusações falsas se somam à precarização do trabalho, sobrecarga, retirada da autonomia pedagógica e pressão por resultados.

Os transtornos de saúde mental são citados por 62% dos docentes como principais causas de afastamento, segundo o Relatório Técnico da 5ª Pesquisa de Saúde Docente, de 2024. Andrei é exemplo dos efeitos psicológicos do ambiente de tensão: tem crises de ansiedade e pânico, usa medicação e precisa de acompanhamento.

Recentemente, o Sinte lançou um canal de denúncias para mapear e combater os crescentes casos de violência nas escolas. A proposta é que o Sindicato aja de forma mais assertiva na defesa dos direitos da categoria e na cobrança de políticas públicas eficazes, a partir de informações tratadas sob sigilo.

“Eu tenho que pensar bem o que eu vou fazer no futuro, mas no momento minha opção foi ficar e lutar mais um pouquinho esse ano. E o ano que vem é outro ano. A extrema direita focou na educação e não vai desistir. Então, a gente tem que se fortalecer e fazer o nosso projeto”, disse Juliana.

O projeto, explica Andrei, é garantir que a educação cumpra seu papel. Toda vez que foi chamado à direção da escola para dar explicações a famílias sobre aspectos questionados em seu trabalho, ele se municiou de estudos sobre legislação e sobre os princípios norteadores dos currículos, para garantir que sua atividade não é ilegal e nem foge do que se preza nos documentos oficiais.

“Hoje eu não consigo, eu não me vejo apto emocionalmente para voltar à sala de aula. E falar de futuro, para mim, tem sido muito difícil: tenho conseguido viver um dia de cada vez, resolver as demandas de cada dia nessa luta pela justiça”, contou emocionado.

“O que eu quero é que as mesmas pessoas que me difamam na internet precisem vir a público falar sobre a mentira e os danos que causaram nas nossas vidas, para nunca mais fazerem isso com ninguém”, completou.

Ausência de proteção estatal

A Secretaria de Educação de Santa Catarina informou, por e-mail, que possui um projeto de combate à violência contra professores, previsto para ser lançado ainda em outubro. Entre as principais ações, destacam-se: sensibilização dos estudantes e famílias para o respeito ao professor; acolhimento do professor vítima de violência, bem como o registro da ocorrência contra o agressor.

Para Juliana e Andrei, a ausência de proteção efetiva do Estado acirrou a tensão na comunidade e os levou à brutalidade e adoecimento. “O Estado tem condições e o dever de nos indenizar, assim como qualquer outro profissional da educação que passe por situações parecidas”, pontuou Andrei. 

Na pesquisa Razões da epidemia de violência contra professoras e professores do Ensino Básico brasileiro, do Observatório do Estado Social Brasileiro, pesquisadores descrevem o fenômeno como “erosão da esperança, que escapa como o pó do giz branco da lousa”.

“É sobre como nossos colegas do Ensino Básico tornaram-se reféns; reféns que, hoje, sentem no corpo as mais variadas formas de violência territorializadas no espaço escolar”.

Fonte: ICL

Deixe uma resposta