Número de homicídios dolosos registrados no 1º semestre em São Paulo representa a maior proporção desde 2013, início da série histórica divulgada pela SSP-SP
Victoria Manoelly dos Santos, de 16 anos, levou um tiro durante uma abordagem policial em Guaianases, na zona leste de São Paulo. Imagens da câmera corporal do sargento Thiago Guerra registraram o momento em que ele deu uma coronhada no irmão da adolescente e a arma disparou. Victoria chegou a ser levada ao Hospital Geral de Guaianases, mas não resistiu. O caso, ocorrido em janeiro, não é isolado.
No primeiro semestre de 2025, 26% dos homicídios dolosos registrados em São Paulo foram causados por policiais — o maior percentual desde 2013, início da série histórica divulgada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP).
Especialistas consideram esse índice alarmante: segundo o sociólogo Ignacio Cano, a proporção ideal de mortes causadas por agentes do Estado não deve ultrapassar 10%. Para o pesquisador Paul Chevigny, percentuais acima de 7% já são considerados abusivos.

Entre janeiro e junho deste ano, 365 pessoas foram mortas por policiais no estado de São Paulo. A média é de duas mortes por dia. Embora o número represente uma queda de 1,8% em relação ao mesmo período de 2024, o cenário é mais grave quando comparado a 2022, ano anterior à posse do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite. Em relação àquele período, a letalidade em 2025 foi 78% maior.

Do total de vítimas da letalidade policial no semestre, 84% foram mortas por policiais em serviço, que são as que o Estado têm maior controle. A Polícia Militar respondeu por 96% das mortes; e a Polícia Civil, por 4% — o equivalente a 16 casos.

Ao longo da gestão Tarcísio-Derrite, São Paulo viu retrocesso em políticas que ajudavam a reduzir a letalidade policial. Um dos exemplos é o enfraquecimento do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar. A tecnologia, antes com gravação ininterrupta, passou a funcionar por acionamento manual. A mudança foi criticada por especialistas em segurança pública.
A dupla também esteve à frente de operações letais na Baixada Santista — como a Escudo e a Verão — que deixaram 84 mortos. Diante das denúncias de execuções, agressões e invasões de domicílio durante essas ações, Tarcísio reagiu afirmando: “Pode ir na ONU que não tô nem aí”.
Ouvidor aponta incentivo à violência na PM de SP
São Paulo segue entre os estados com maior letalidade policial do país, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O número de pessoas mortas por policiais no estado subiu de 504 para 813, um aumento de 61%.
Para o ouvidor das polícias do estado de São Paulo, Mauro Caseri, essa alta foi puxada pelas operações Escudo e Verão na Baixada, mas também reflete fatores de comando e estrutura. Ele cita declarações de autoridades que naturalizam ou incentivam a violência policial, como a de Tarcísio em desdém às críticas e as do atual vice-prefeito da capital, Ricardo Mello Araújo (PL), defensor de abordagens diferentes nas periferias. Soma-se a isso, ressalta Mauro, a precarização das condições de trabalho e da saúde mental dos policiais, submetidos a baixos salários e jornadas extenuantes.
“Sem alterar esse quadro, incluindo o pleno funcionamento das Câmeras Corporais e o uso da força progressiva nas abordagens, com armas menos letais, corremos o risco de ver esses números continuarem sua escalada de morte e destruição, à margem da justiça, das boas práticas policiais e do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana”, diz Mauro.

Jovens e negros seguem como principais alvos
Jovens e negros seguem como os principais alvos da letalidade policial em São Paulo. No primeiro semestre de 2025, das 365 pessoas mortas por policiais, 191 eram negras (52%). A imensa maioria das vítimas, 98%, era formada por homens. Apenas três mulheres foram assassinadas no período e, em dois casos, o sexo da vítima não foi identificado. A faixa etária predominante também reforça o perfil das vítimas: 58,4% tinham entre 19 e 35 anos, enquanto cerca de 9% eram adolescentes com até 18 anos.
Entre os jovens mortos está Nicolas Alexandre Pereira dos Santos de Oliveira, de 19 anos. Negro e morador de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, ele foi morto em maio por policiais militares que patrulhavam a comunidade. Três agentes admitiram ter atirado, dois deles com fuzis. Nicolas foi atingido na mão esquerda, braço direito, cintura e perna esquerda. Segundo um familiar ouvido pela Ponte, o jovem não estava armado.
“A exploração capitalista se estrutura em cima da exploração racial, antes o projeto era explorar os corpos negros até a morte, agora com o avanço das tecnologias que dispensam uma grande quantidade de mão de obra, é necessário descartar esta mão de obra. O genocídio do povo negro agora ganha outro desenho: a eliminação destes corpos através da execução policial. Uma outra forma é o encarceramento em massa que além de aprisionar os corpos indesejáveis, negros pobres e periféricos, ainda alimenta a reprodução do lucro”, diz Regina Lucia Santos, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo.
Em uma nota técnica sobre a letalidade no primeiro semestre, o Instituto Sou da Paz destacou que é a capital paulista quem concentra a maior parte das mortes pela policia no estado: foram 148 casos no primeiro semestre, o que representa 40% do total.
Os distritos policiais com mais registros na cidade de São Paulo foram o 37º DP (Campo Limpo) e o 49º DP (São Mateus), ambos com seis vítimas, seguidos pelo 90º DP (Parque Novo Mundo), com cinco, e pelo 11º DP (Santo Amaro) e 12º DP (Pari), com quatro cada um. Em todas essas regiões, os homicídios cometidos por agentes do Estado representaram ao menos um terço das mortes violentas intencionais no período. Nos DPs de Santo Amaro e São Mateus, a proporção foi ainda maior: 80% e 60%, respectivamente.
Para Rafael Rocha, coordenador de projetos do Sou da Paz “ainda que com uma leve redução das mortes cometidas por policiais em serviço na capital, a manutenção destas ocorrências em um patamar altíssimo, com o dobro de mortes cometidas por policiais em serviço no 1º semestre deste ano do que na comparação com 2022 e 2023, e a concentração destas mortes em bairros periféricos é mais uma prova que a atual gestão optou não apenas por uma política de segurança pública pautada no confronto, mas pelo enfraquecimento de mecanismos e políticas de profissionalização do uso da força criadas pela própria PMESP”, analisa.
MP-SP registra número diferente
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), por meio do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), também registra e divulga dados sobre letalidade policial. No primeiro semestre de 2025, o órgão contabilizou 366 mortes causadas por agentes do Estado — uma a mais do que o número divulgado pela SSP-SP.
Em geral, os dados do MP-SP são disponibilizados antes dos da SSP, que costuma consolidar os números apenas ao final do mês seguinte ao período analisado.
Segundo o MP, das mortes registradas, 350 foram causadas por policiais militares e 16 por policiais civis. O levantamento também aponta que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) foi responsável por 17 mortes no semestre.
O que dizem as autoridades
A reportagem questionou a SSP-SP sobre os dados de letalidade policial, o perfil das vítimas e as denúncias envolvendo a atuação de agentes em serviço. Em nota, a pasta disse que desde o início da gestão mais de mil policiais civis e militares foram presos, demitidos ou expulsos, “reforçando o compromisso de São Paulo com a legalidade”.
Leia na íntegra a nota da SSP-SP
A Secretaria de Segurança Pública investe continuamente na recomposição e capacitação do efetivo, além da atualização de protocolos operacionais e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo visando à redução da letalidade. Além disso, há comissões direcionadas para análise das ocorrências, visando ajustar procedimentos, revisar treinamentos e aprimorar as estruturas investigativas. Desde o início da atual gestão, mais de mil policiais civis e militares foram presos, demitidos ou expulsos, reforçando o compromisso de São Paulo com a legalidade.
Fonte: ICL






