Por Anderson Pires*
Nos últimos anos o debate identitário, principalmente envolvendo questões de gênero e raça, tem tomado grandes proporções no Brasil. Em meio a um cenário de preconceitos os mais diversos e episódios diários de violência, abuso e assédio, a questão passou a ganhar espaços, notadamente, nos meios de comunicação e mídias sociais.
O Brasil acumula indicadores negativos absurdos com relação a diversas formas de violência relacionadas ao preconceito. Tem havido um aumento de entidades, movimentos sociais e representação política comprometida em travar o debate identitário. Porém, quase sempre essa discussão não apresenta uma abordagem classista, que trate a redução da desigualdade e a quebra da lógica do mercado como principais fomentadores da situação que o país vivencia.
Atento a isso, o mercado incorporou discursos relativos a igualdade de gênero, orientação sexual, racismo e outros temas relacionados com a velocidade de um predador que fareja a presa a quilômetros de distância. Os responsáveis pelo marketing perceberam o potencial que existiria nessa abordagem, como também os ganhos no faturamento e imagem institucional.
Empresas passaram a utilizar imagens e signos capazes de promover associações com o público inserido nas questões identitárias. Comerciais de TV, vídeos no YouTube e todas as mídias digitais viraram um ambiente de propagação de beijos gay, modelos negros e transexuais. Porém, mesmo com a exposição de cenas que são reprimidas e vistas com preconceito por uma grande parcela da sociedade, o mercado percebeu que isso não representaria mudanças no modelo de exploração que adotam, muito menos seria motivo de redução dos lucros. Afinal, qual família não tem algum membro escondido no armário? Sendo assim, na medida que a publicidade passa a mostrar aquilo que escondem, lhes conforta de alguma forma e até encoraja.
O grau de demagogia é significativo. Empresas apoiadoras de políticos conservadores, marcas que usam de trabalho análogo ao escravo e extraem de forma predatória recursos naturais usam sem qualquer pudor esses signos do identitarismo. O pior de tudo nessa história é ver pessoas ligadas a movimentos sociais, alguns que se arvoram de esquerda, embarcarem nesses instrumentos de marketing sem qualquer capacidade crítica. Não percebem que fortalecem quem dizem combater. É como ser pacifista e bater palmas para um magazine que elabora uma campanha estilo “Faça paz, não faça a guerra”, mas que vende armas entre seus milhares de produtos. Para ficar ainda mais fácil o entendimento, já imaginou o Boulos fazendo propaganda para a MRV? Isso seria inconcebível.
Mais que incoerência, em alguns casos beira o oportunismo. Como pode alguém que se diz ativista e intelectual da causa dos negros, a parcela mais explorada da sociedade, fazer propaganda para o aplicativo 99, como fez a Djamila Ribeiro? Ou o 99 não seria promotor da exploração e desigualdade como o UBER e o iFood? Não são os negros majoritariamente os explorados por esses modelos de precarização do trabalho?
Da mesma forma, temos o exemplo do Emicida. Após promover um documentário que exalta a necessidade de resgate da luta dos negros, do combate ao racismo, da abertura de espaços na sociedade para os mais oprimidos, faz uso dos seus minutos de fama para promover o maior grupo privado de educação no mundo. Alguém pode querer passar o pano e dizer que não é algo tão grave. Claro que é grave. É gravíssimo. Quem se propõe ativista não pode corroborar com a promoção de empresas como a Universidade Estácio de Sá, do grupo Kroton, que trabalha pelo processo de privatização da educação e pela extinção de direitos que deveriam ser de todos, mais ainda dos negros, que nunca tiveram um espaço proporcional nas instituições de ensino superior no Brasil. O cachê do Emicida não paga o processo de exclusão do qual ele resolveu fazer parte. Usar um slogan “Vai lá e brilha”, além de totalmente positivista, é tripudiar com a realidade de desigualdade que o Brasil vive.
Não vou nem me alongar com relação aos elogios que escuto referentes a Anitta e todo seu “empoderamento”. Achar que a apropriação por parte da indústria de manifestações culturais oriundas das classes desfavorecidas é algo novo, é pelo menos ignorância, pra não dizer burrice. Essa estratégia é tão antiga quanto o capitalismo. Dizer que Anitta tem poder sobre seu corpo e tratar como exemplo de emancipação feminina é um desrespeito a milhões de mulheres excluídas, que não foram abduzidas pelo empreendedorismo que lhe garantiu sucesso. Porque Anitta é a versão pós-moderna da objetificação com o requinte de crueldade da meritocracia empreendedora. Direitos que devem ser universais não podem ser exaltados por quem se diz defensor de uma causa quando a forma de conquista segrega e promove desigualdade.
O marketing identitário (mesmo sem ainda ter uma conceituação) já é tão difundido que até exemplos de fraudes para obtenção de engajamento podem ser encontradas. Marcas que criam estórias de preconceito e jogam nas redes sociais, sem ações jurídicas efetivas que comprovem o fato e as pessoas embarcam sem qualquer criticidade em relação ao episódio, muito menos à forma como ele está sendo difundido.
O Marketing identirário é mais um dos malabarismos do capitalismo para afastar as pessoas da luta de classe e fazer as concessões que lhe são convenientes para manter a dominação, ampliar a exploração e garantir lucros. Promover a luta pela faceta e não pelo conceito provoca distorções que só fortalecem a segregação que alguns dizem combater. Quem diz defender os menos favorecidos, mas perdeu a consciência de classe, desconfie. Pode ser só mais um garoto-propaganda à espera do seu primeiro grande cachê, ou mais um criador do seu “lugar de lucro”.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do ‘Termômetro da Política’.