Relatório entregue ao procurador-geral de Justiça de São Paulo apresenta, a partir de relatos de familiares e testemunhas, ‘assassinatos, tortura, socorro dificultado, mudança de cena do crime’, de 7 a 9 de setembro nas cidades de Santos e São Vicente. Desde o início da operação, 33 pessoas foram mortas. Governo diz que mortes são consequência da reação de criminosos.
Entidades de defesa dos direitos humanos e institutos ligados à segurança pública entregaram na noite desta segunda-feira (26), ao procurador-geral de Justiça, Mario Sarrubbo, um relatório de denúncias de abusos e violência policial durante a operação na Baixada Santista.
As entidades observaram, a partir de relatos de familiares e testemunhas, “assassinatos, tortura, socorro dificultado, mudança de cena do crime”, de 7 a 9 de setembro durante a Operação Verão, que já foi chamada de Escudo.
A Operação Escudo começou em 28 de julho de 2023 e foi finalizada, temporariamente, em 5 de setembro do ano passado, deixando 28 mortos. Retomada no início deste ano, e com menos tempo em vigor, a operação já matou 33 pessoas no litoral paulista.
Em ambos os anos, a operação foi deflagrada depois que policiais militares foram mortos.
O documento apresenta um caso de tentativa de execução, cinco casos de execução sumária, duas invasões ilegais de domicílio e seis relatos de abusos policiais durante abordagens. Ao todo, foram oito vítimas fatais da Operação Escudo nas cidades de Santos e São Vicente em apenas três dias. “Todos os casos ouvidos apresentam relatos de brutalidade e uso indevido da força policial”, dizem as entidades.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que “os casos de morte decorrente de intervenção policial são consequência direta da reação violenta de criminosos à ação da polícia no combate ao crime organizado.”
Jovem com deficiência visual
Um dos casos de execução, segundo o relatório, é o do Hildebrando Simão Neto, de 24 anos. Na versão da polícia, ele foi baleado junto com outro jovem, depois de ambos apontarem armas contra policiais, dentro de uma casa, em São Vicente.
A família contesta, com base em uma evidência clínica: “segundo laudo médico, desde 2016, o jovem sofria com um quadro de Cerratocone Bilateral avançado.
Era cego de uma vista e tinha baixa visão na outra, sendo capaz de enxergar a apenas poucos centímetros de distância.
“Ele não amarrava um sapato sozinho. As roupas muitas das vezes colocava ao avesso. Tudo a gente ajudava ele. A minha casa é um sobrado. Eu que levava ele, ou os irmãos dele que levavam ele pro banheiro, porque ele não subia nem descia as escadas com medo de cair. Não tinha condições nenhuma do meu filho fazer nada com ninguém. Meu filho era totalmente cego”, diz mãe da vítima.
O relatório, que também é assinado pela Ouvidoria das Polícias, destaca duas invasões ilegais de domicílio. E ainda um caso específico, envolvendo um funcionário da Prefeitura de São Vicente.
O SP2 mostrou o funcionário participando da limpeza de um córrego, quando policiais o abordaram. Testemunhas contaram que ele se recusou a colocar as mãos na cabeça, e, por isso, foi baleado na perna. Por imagens, é possível ver que o PM tenta segurar o jovem, que resiste. O policial, então, tenta dar um soco nele. É nessa hora que o homem vai para cima e é atingido por um disparo, desta vez no peito. Ele segue internado na Santa Casa de Santos.
Para Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o objetivo do relatório entregue nesta segunda, não é apenas cobrar a investigação dos casos passados, mas evitar episódios futuros.
“Cabe ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, então, nossa expectativa é mobilizar e sensibilizar ainda mais a instituição para acompanhar os casos que estão acontecendo na Baixada Santista. Viemos com uma demanda de uma força tarefa para monitorar esses casos, todos os homicídios, as mortes por intervenção policial ocorridas na Baixada Santista, e designação de promotores exclusivos para acompanhar esses casos, que tem vitimado muita gente, inclusive os próprios policiais”, diz.
As organizações e parlamentares que participaram da comitiva, que colheu os depoimentos e assinam o relatório, são Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), Comissão Arns, Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, Instituto Vladimir Herzog, Mandato da Deputada Federal Juliana Cardoso, Mandato da Deputada Estadual Mônica Seixas, Mandato da Vereadora Débora Alves Camilo de Santos, Mandato do Deputado Estadual Eduardo Suplicy, Mandato do Vereador Tiago Peretto de São Vicente, Ouvidoria das Polícias do Estado São Paulo, Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica, Rui Elizeu de Matos Pereira e Patrícia Bueno Resende.
As entidades apresentaram uma série de recomendações aos órgãos públicos “para que cessem as violações de direitos humanos praticadas pela polícia na Baixada Santista”. Entre as recomendações está a realização de investigações autônomas e requerimento da cadeia de custódia das câmeras corporais dos policiais, bem como laudos necroscópicos.
Operação policial na Baixada Santista teve início com morte de soldado da Rota. — Foto: Sílvio Luis/A Tribuna Jornal
O que diz a SSP
“Os casos de Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) são consequência direta da reação violenta de criminosos à ação da polícia no combate ao crime organizado, que tem presença na Baixada Santista e já vitimou três policiais militares desde 26 de janeiro. A opção pelo confronto é sempre do suspeito, colocando em risco a vida do policial e da população.
As forças de segurança do Estado são instituições legalistas que atuam no estrito cumprimento do seu dever constitucional, e suas corregedorias estão à disposição para formalizar e apurar toda e qualquer denúncia contra agentes públicos, reafirmando o compromisso com a legalidade, os direitos humanos e a transparência. O caso citado é investigado pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário.”
Relatório para a ONU
A Defensoria Pública de São Paulo, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos e o Instituto Vladimir Herzog, pediu em 16 de fevereiro à ONU o fim da operação policial na Baixada Santista e a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais pelos policiais militares.
- O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH), da Defensoria, teve acesso a cinco boletins de ocorrência referentes a sete vítimas dos policiais neste ano.
Segundo a defensoria, apesar de três das cinco ocorrências terem envolvimento de policiais da Rota, um dos batalhões já equipado com câmeras operacionais portáteis, “não há menção ao uso da tecnologia nos respectivos Boletins de Ocorrência de morte por intervenção policial lavrados. Em quatro Boletins de Ocorrência houve registro do número de disparos de arma de fogo, contabilizando 19 disparos que atingiram as vítimas fatais, o que totaliza uma média de 4,75 disparos em cada ocorrência”.
No início do ano, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que câmeras nas fardas não oferecem segurança efetiva na vida do cidadão e admitiu que sua gestão não irá investir em novos equipamentos.
O uso do equipamento nos uniformes da PM em SP evitou 104 mortes, segundo levantamento da FGV em dezembro de 2022 e a letalidade dos policiais em serviço foi a menor da história no ano passado.
Segundo o documento enviado à ONU, há “indícios da não preservação das cenas dos crimes, bem como a repetição da versão policial em todas as ocorrências com morte: que os suspeitos portavam drogas, atiraram e que teriam sido socorridos ainda com vida. Nesse contexto, a ausência de corpos nas cenas de crimes impossibilitaria que a perícia coletasse provas técnicas.”
Em um dos boletins de ocorrência, ainda de acordo com a defensora, a não preservação do local dos fatos é registrada da seguinte forma: “em razão do tumulto causado nas imediações e com o eventual risco de novo confronto no local, ficou prejudicado para perícia, razão pela qual não possível a preservação do sítio do evento por parte dos componentes da ROTA”.
Uma das pessoas mortas era José Marcos Nunes da Silva, homem de 45 que voltava para casa de seu trabalho como catador de material reciclável em um lixão da Baixada Santista. Reconhecido na comunidade como trabalhador, ele foi morto dentro de sua residência por policiais militares da Rota na comunidade de Sambaiatuba, na cidade de São Vicente.
“A morte de José reproduz padrões identificados na primeira fase da Operação Escudo, dentre as quais, a abordagem sistemática e aleatória de pessoas nas comunidades periféricas da Baixada Santista, muitas vezes com questionamentos sobre a existência de passagens anteriores pelo sistema prisional, assim como o ingresso em domicílio sem ordem judicial”, diz o documento.
- Por fim, os autores pediramm, entre outras solicitações, “que os órgãos internacionais questionem o estado brasileiro sobre os eventos ocorridos durante a operação, especialmente no quanto às mortes ocorridas em Guarujá, São Vicente e Santos, além da devida apuração e adoção de medidas administrativas quanto aos envolvidos”.
Primeira fase da Operação Escudo
Dois policiais militares que participaram da primeira fase da Operação Escudo, no litoral paulista, no ano passado, respondem por homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e recurso que impossibilitou a defesa da vítima).
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciou os agentes, e a Justiça acatou a denúncia. Assim, os PMs vão responder ao processo como réus.
A denúncia traz imagens de câmeras de segurança que, de acordo com os promotores do caso, mostram o assassinato de Rogério de Andrade Jesus, morto com um tiro de fuzil na manhã do dia 30 de julho.
Dois policiais militares se tornam reús por homicídio qulificado durante a Operação Escudo, no litoral paulista
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) reuniu ao menos 11 relatos de violações dos direitos humanos durante a primeira fase da operação.
Testemunhas relataram casos de execução, pessoas de outras regiões sendo levadas para serem mortas onde ocorria a operação, invasão de casas, omissão de socorro médico, ausência de câmeras ou identificação nas fardas, morte de moradores de rua, entre outros.
Fonte: G1