O Peso do Legislativo

Roberto Simiqueli é economista, Mestre em Ciência Política e Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas.

Num longínquo Fevereiro de 1788, alguns dos luminares da política norte-americana discutiam o tema da separação dos poderes a partir da publicação da edição de número 51 dos artigos d’O Federalista. Essa publicação, em particular, é notória pela apresentação de um conceito de suma importância para as democracias contemporâneas – o estabelecimento de alguma medida de equilíbrio entre os poderes a partir do exercício de pesos e contrapesos (checks and balances) entre as vontades das autoridades investidas no executivo, legislativo e judiciário. Ecoando os sentimentos filosóficos da época, Madison, Hamilton e Jefferson visualizavam esse dispositivo como uma forma de coibir as ambições, brios e ímpetos dos homens públicos; a complexa interação entre uma gama de interesses potencialmente antagônicos, no seio do aparelho estatal, atuaria em dissuasão a pretensões tirânicas dos indivíduos ou facções que poderiam tomar de assalto a jovem democracia norte-americana.

Mais de dois séculos após a publicação desse argumento n’O Federalista, sua lembrança soa quase anedótica. Há os absurdos do imperialismo estadunidense (como a recente ofensiva militar na Síria, agora empreendida pelos democratas – supostamente progressistas até algumas semanas atrás), o  legado prático e discursivo de Donald Trump e o espetáculo autoritário da invasão do capitólio. Mas esses acontecimentos são facilmente eclipsados pela conjuntura política brasileira – afinal, nada poderia estar mais distante da proposta de pesos e contrapesos do que a farsesca eleição de Artur Lira e Rodrigo Pacheco à presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente.

Um observador desavisado poderia enquadrar os episódios dessa temporada da política brasileira como uma reprise do que temos assistido desde “O Grande Acordo, com o Supremo, com Tudo”, mas há alguns detalhes que não podem ser evitados, a risco de continuarmos a nos debater em vão contra a arrancada do autoritarismo tupiniquim. As recentes eleições à Presidência da Câmara e do Senado são representativas da consolidação do bolsonarismo como força política institucionalizada, de uma sinistra convergência desse matiz autoritário com o fisiológico centrão e (o que deveria causar ainda mais alerta) do esgotamento de estratégias convencionais de enfrentamento à selvageria bolsonarista.

Até a ratificação da vitória de Bolsonaro no parlamento, a necropolítica do capitão caminhava sobre a corda bamba. A absoluta inépcia na administração da crise social, econômica e sanitária ocasionada pela pandemia global de Covid-19 impunha pesado impacto sobre a aprovação do presidente, ao passo que o nada surpreendente despreparo de Paulo Guedes provocava manifestações contritas de banqueiros e empresários arrependidos. Motivados, provavelmente, pela rejeição aos principais referenciais da esquerda brasileira, Maia e os decanos do STF faziam vista grossa aos abusos bolsonaristas, seja no consistente engavetamento de pedidos de impeachment, seja na manifestação cordata por notas de repúdio face a ameaças abertas à democracia. Por suas próprias ambições, os poderes que deveriam disciplinar a atuação escatológica do executivo se abstiveram de exercer sua função enquanto pesos e contrapesos.

Lira e Pacheco, por outro lado, representam uma notável inflexão, já que não se trata mais da leniência na manutenção do equilíbrio institucional entre os poderes, mas de seu abandono tout court. E veja, não é como se as alternativas se propusessem a algo diverso disso: quando arguido pela bancada do Roda Viva de 25.01.2021 sobre seu compromisso na formação de uma frente de oposição à candidatura de Lira, Baleia Rossi respondia que havia concordado em ler (sim, ler) todos os pedidos de impeachment que fossem encaminhados à Presidência da Câmara, caso eleito. Com isso, obteve o apoio de importantes partidos de esquerda (apesar do DEM de Maia ter se reunido em torno da figura de Lira às vésperas da votação).

Lira, em particular, sinaliza para um aparente diálogo com os governadores e a sociedade civil nos últimos dias. Em tweets recentes, o parlamentar evidencia sua preocupação com o recrudescimento da pandemia. Logicamente, em resposta ao agravamento das estatísticas referentes a contágio e óbitos, agenda uma nova rodada de reuniões. Para tratar da escalada dos casos? De novas medidas de isolamento social? Da criação de frentes de trabalho para contenção das novas cepas e variantes do vírus? Não – Lira se encontrou com a Febraban em 26.02 para discutir o imperativo das reformas, e convocou os governadores e a Comissão Mista de Orçamento “para ouvir como o orçamento pode ajudar na superação da pandemia”. A primeira pauta do recentemente eleito presidente da câmara é condicionar a resposta à crise à submissão dos instrumentos de política fiscal ao mercado financeiro.

Essa movimentação evidencia o resgate do discurso neoliberal de defesa da austeridade fiscal presente nas posições e destaques da direita durante a votação da PEC do Orçamento de Guerra (PEC 10/2020), em Maio de 2020, e na dantesca defesa recente (Agosto de 2020) do teto de gastos (PEC 55/2016), ponta de lança da ofensiva ortodoxa sobre as finanças públicas. Em repetidas ocasiões, parlamentares vinculados à base (declarada ou envergonhada) governista e economistas escolados nas tradições proféticas de Chicago (que lhes permitem, reza a lenda, discernir os anseios do mercado em meio ao ensurdecedor silêncio de 250.000 vidas tiradas pela Covid) se apegaram a uma nova analogia primária na explicação de sua carga sobre a Constituição Cidadã e os servidores públicos – além do teto, era preciso reformar o piso de gastos, desonerando o Orçamento do Governo Federal de seus gastos obrigatórios (que correspondem a 95% das despesas da união). As invenções criativas, nesse caso, vão de reduções pontuais de 30% em jornada e remuneração dos servidores (um destaque à PEC 10/20 proposto pelo Novo, posteriormente retirado, e que implicaria em penalizar em especial profissionais da saúde, da educação e da segurança) aos tétricos novos regimes para contratação de servidores públicos federais previstos na Reforma Administrativa em trâmite na CCJ. Se aprovada em sua versão atual, a Reforma abrirá espaço para contratações temporárias e demissões entre os novos ingressantes no serviço público – algo que fere não só a instituição dessa categoria, no Brasil, como o princípio dos pesos e contrapesos que discutíamos alguns parágrafos atrás.

No arranjo de forças consolidado após a eleição de Lira e Pacheco, o poder legislativo descarta toda e qualquer veleidade de equilíbrio dos excessos do bolsonarismo. Em uma peculiar inversão, empresta o “peso” que deveria exercer em sentido contrário aos desmandos do capitão à legitimação de mais essa afronta à democracia. Nessa conjuntura, ou nos pautamos pela construção de contrapesos populares aos abusos da austeridade fiscal ou assinamos o obituário das aspirações sociais da Constituição de 1988. Com o apoio da Câmara e do Senado, Bolsonaro assassinaria, assim, o legado não de uma, mas de duas constituições.

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