Na celebração do chamado ”Dia do Canadá”, a indignação pela descoberta de 751 túmulos traduziu-se na derrubada de estátuas das rainhas Victoria e Isabel II. Um dia antes da data comemorativa foram descobertas outras 182 sepulturas anônimas

Na celebração do chamado “Dia do Canadá”, a indignação pela descoberta de 751 túmulos, ao final de maio, nas proximidades de um internato para crianças indígenas, em Kamloops, no estado da Columbia Britânica (oeste canadense), traduziu-se na derrubada de estátuas das rainhas Victoria e Isabel II. Um dia antes da data comemorativa foram descobertas outras 182 sepulturas anônimas.

Manifestantes derrubaram os monumentos em Winnipeg, ao passo que a revolta aumenta com o descobrimento dos restos mortais de centenas de crianças em valas localizadas nas antigas escolas de “integração”. Crianças indígenas internadas e separadas de seus familiares, obrigadas a permanecer nessas instituições, que as separavam de suas culturas originais. Uma multidão brada revoltada com esse genocídio.

A ação ocorreu na quintaa-feira, no “Dia do Canadá”, quando tradicionalmente acontecem diversas celebrações em todo país. Muitas cidades canadenses evitaram as celebrações e não realizaram atos este ano devido ao escândalo recém revelado. O primeiro ministro, Justin Trudeau, indicou que esse dia deveria ser um momento para reflexão.

A ferida do genocídio cultural está aberta não somente porque o último dos centros de internamento encerrou suas atividades há apenas duas décadas, mas também porque os efeitos da desterritorialização, o roubo da identidade, o deslocamento forçado e a doutrinação violenta atingem todos que sofreram diretamente, assim como todas as comunidades tocadas por tais atrocidades.

A estátua da rainha Victoria, que reinou entre 1901 e 1937, foi coberta de tinta vermelha, assim como de marcas de mãos, homenageando as vítimas internadas nas escolas, que os britânicos organizaram na sua antiga colônia com a ideia de “reeducar” os nativos.

Durante 165 anos até 1998, as escolas separavam à força as crianças indígenas de suas famílias, submetendo-as à desnutrição e ao abuso físico e sexual, o que a Comissão da Verdade e Reconciliação qualificou como genocídio cultural em 2015. Em Winnipeg, uma multidão aplaudiu a queda da estátua da rainha Victoria que fica em frente à câmara legislativa provincial de Manitoba.

Outros protestos aconteceram na quinta-feira em Toronto, centro financeiro do Canadá, enquanto uma manifestação com o lema #CancelCanadaDay (#Cancele o Dia do Canadá) na capital, Ottawa, atraiu milhares de pessoas em apoio às vítimas e sobreviventes do sistema escolar de integração de indígenas. Houve vigílias e reuniões em outras partes do país. Muitos dos participantes vestiram roupas laranjas, o que se tornou um símbolo do movimento.

Trudeau, primeiro-ministro e católico, condenou os incêndios e atos de vandalismo nas igrejas situadas nos arredores dos colégios, locais do descobrimento das valas comuns. Disse que compreende a fúria que muitas pessoas sentem em relação à igreja e ao governo federal, além disso, fez um tímido pedido de desculpas pelo extermínio ocorrido. Trudeau também pediu ao Papa Francisco que fosse realizado um pedido formal de retratação. “É real e completamente compreensível dada a história vergonhosa que todos sabemos, principalmente nesse momento”, disse o primeiro-ministro, sobre as manifestações.

Racismo colonial e nos dias de hoje

O Canadá e os Estados Unidos se encontram imersos numa revisão obrigatória do racismo e do colonialismo sobre o qual suas sociedades foram construídas. “Não celebraremos terras indígenas roubadas, nem as vidas indígenas tiradas. Pelo contrário, faremos manifestações para honrar todas as vidas perdidas pelo Estado canadense”, declarou o movimento social Idle no More (Inação Nunca Mais), que convocou a mobilização em solidariedade aos povos originários.

Faz um ano que assassinato do afro-estadunidense George Floyd, pelo policial branco Derek Chauvin, reuniu a maior mobilização social que os Estados Unidos já havia visto em mais de meio século. O descobrimento de três locais de sepultamento clandestino de crianças tem comovido à sociedade canadense e a obrigado a olhar um dos aspectos mais obscuros do seu passado: a política de assimilação cultural forçada dos povos ameríndios e inuit.

No dia 29 de maio, foi comunicado o descobrimento de uma fossa com os restos mortais de 215 crianças, alguns de apenas 3 anos de idade, na comunidade de Kamloops. Menos de um mês depois, 750 sepulturas anônimas foram descobertas na província de Saskachetwan (centro-oeste do Canadá) e, somente na quarta-feira passada, confirmou-se a presença de outras 182 próximas à cidade de Cranbrook (localizada na província de Colúmbia Britânica).

Nessas regiões funcionaram os centros de internamento forçado para menores indígenas, os quais eram financiados pelo Estado e administrados pelas organizações religiosas com o propósito de forçar as crianças a aprender o idioma e os costumes ocidentais. Entre 1863 e 1998, mais de 150 mil crianças foram reclusas nessas instituições nas quais era proibido que falassem seu idioma nativo.

Ali, de acordo com os resultados apresentados em 2015 por uma Comissão da Verdade e Reconciliação e segundo o parlamento canadense, sofreram de má nutrição, agressões verbais, assim como abusos físicos e sexuais praticados por parte dos diretores e professores.

Aproximadamente 3.200 crianças morreram por abuso e negligência nos 139 centros que existiram, dirigidos pela Igreja Católica. Outras organizações estimam, no entanto, que são 6.000 as mortes ocorridas, o que o chefe da Federação das Nações Aborígenes Soberanas de Saskatchewan, Bobby Cameron, chamou de campos de concentração.

A exumação dos corpos reavivou a indignação pelas sistemáticas violações sexuais contra menores ocorridas nessas instituições. Seis igrejas foram incendiadas em distintas localidades de maioria indígena, porém a ira social não tem se limitado à instituição católica: há um mês, um grupo de manifestantes derrubou a estátua de Egerton Ryerson, um dos criadores desse sistema de internamento.

Agora Winnipeg viu cair as efígies tanto da rainha Victoria – reinado em que se criaram os centros – como de Isabel II, atual monarca e chefe do Estado do Canadá.

Obviamente é positivo que o Estado canadense reconheça essa política genocida e peça desculpas a suas vítimas, porém ainda é necessário um enorme trabalho de reivindicação e reconciliação para sanar a ferida causada aos povos originários em um país que se anuncia respeitoso aos direitos humanos e à diversidade.

Mirko C. Trudeau é membro do Observatório de Estudos Macroeconômicos (Nova Iorque). Analista de temas da América do Norte e Europa, associado ao Centro Latinoamericano de Análises Estratégicas. (CLAE, estrategia.la)

*Publicado originalmente por Centro Latinoamericano de Análisis Estratégico | Traduzido por Caio Cursini

Fonte: Carta Maior

Deixe uma resposta